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Assins & Assados

Assins & Assados

01
Jun25

Boubou's - o menu Florescer que encanta com a diversidade de formas, texturas, aromas e sabores

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Fomos ao Boubou's num jantar de domingo, a sala não estava cheia, mas quase, e acho que todas as pessoas, para além de nós, eram estrangeiras.

Tinha estado no Boubou's quase exatamente seis anos antes (apenas três dias de diferença). Tinha a noção de que a cozinha tinha mudado muito, mas não sabia de facto o que a Chef Louise Bourrat estava a fazer.

Ficámos na sala / pátio cheio de plantas, onde tinha jantado seis anos antes. Dias antes tinha sido lançado um novo menu, o Florescer,  e foi por esse que optámos (7 momentos). Um menu que celebra a Primavera, com a renovação e diversidade que a caracteriza, através dos produtos usados e da variedade de cores, formas, aromas e sabores.

Começou por nos chegar um conjunto de três pequenos pratos.

 

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Atum | Kumquat | Sabugueiro

 

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Mexilhão | Açafrão |Limão Fermentado

 

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Couve-flor | Vadouvan |Caviar

 

A filhós de forma, que apela às nossas memórias e tradições, tem sido servida por vários chefs e é sempre interessante ver como é usada em cada caso, com diferentes ingredientes e sabores. Abordagens que refletem sempre as memórias e percurso de vida de quem cria o prato. Aqui com couve-flor temperada com Vadouvan (uma mistura de temperos da cidade indiana de Pondicherry, que esteve sob domínio francês e onde, ainda hoje, se sente a influência desta cultura) e com a complexidade, riqueza de sabores e luxo do caviar. Foi o último destes pratos que comi, comecei pelo atum, mais suave e delicado. No mexilhão, interessante o detalhe de se comer também a (falsa) casca. Um bom começo!

O pão, feito no restaurante, era delicioso e vinha acompanhado de uma manteiga artesanal fumada e flor de Szechuan.

 

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O prato seguinte era lindíssimo, e delicioso, e as flores estavam presentes de várias formas.

 

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Sapateira | Gerânio | Caviar

 

Gostei muito da frescura e delicadeza do prato de espargos, complementado com um molho muito guloso!

 

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Espargos | Kumquat | Sabugueiro

 

Quando chegou a hora do prato de peixe, como nos foi dito, em Portugal tinha que ser bacalhau.  Este chegou acompanhado de um molho pil-pil e de vegetais que não são as suas companhias habituais, mas que lhe davam elegância e frescura.

 

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Bacalhau | Ervilhas | Alho dos Ursos

 

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Borrego | Flor de Courgette | Alface Iceberg

 

Um excelente prato de carne também. Gostei muito da flor de courgette recheada.

Sugeriram-nos que antes das sobremesas comecemos o queijo de cabra com abóbora, não incluído no menu. Quando chegou à mesa surpreendeu-nos, era bem diferente do que esperávamos. Muito bonito! Penso que vinha de menus anteriores, tinha um ar mais outonal do que primaveril, mas integrava-se bem e valeu mesmo a pena experimentar.

 

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Valençay | Abóbora | Mogno Chinês

 

Chegou então a hora das sobremesas.

 

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Ruibarbo | Flor Azul de Mariposa | Algodão Doce

 

Na mesa era regada com o chá de flor azul de mariposa que, em contacto com os outros elemento da sobremesa, e devido à sua acidez, mudava de cor.

 

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A última sobremesa era inspirada o arroz doce que a Mãe, portuguesa, de Louise Bourrat fazia.

 

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Arroz Doce | Yuzu | Jasmim

 

Terminámos a refeição com um chá acompanhado das mignardises, enquanto púnhamos a conversa em dia. É claro que o que comemos também foi um dos assuntos abordados.

 

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Foi um jantar excelente, uma refeição que, tal como a Primavera, também contribuiu para nos renovar, e nos encantar com a riqueza de formas, texturas, aromas e sabores. Para isso também contribuiu o serviço, muito atento, disponível e simpático.

Para mim foi incrível testemunhar a forma como a cozinha de Louise Bourrat evoluiu nos últimos seis anos. Certamente o resultado de muita reflexão, muito trabalho e uma busca muito ativa da forma como vê e exprime a sua cozinha.

 

Depois de ter visitado uma sequência de bons restaurantes, não pude deixar de pensar na excelente forma da cozinha em Lisboa. A variedade de tipos de restaurantes, as diferentes abordagens dentro de cada um deles, que refletem personalidades e percursos de vida diferentes, resultam numa oferta muito diversa, criativa e de excelente qualidade.

 

Boubou's

Rua do Monte Olivete, 32A,  Lisboa

 

 

 

 

28
Mai25

Um sorriso e um pouco mais de cuidado, e tudo me tinha sabido melhor

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Há em Birmingham um restaurante, 670 Grams, que tinha curiosidade em visitar. Tinha ouvido boas referências, e é recomendado pelo Guia Michelin. Como muitos restaurantes aqui, até com estrelas Michelin, tem menus com preços mais acessíveis ao almoço e, de facto, até preferia ir ao almoço. Neste caso, os pratos servido são alguns dos do menu mais extenso do jantar (optei pelo menu com 5 pratos a 50 £). 

Há umas semanas marquei para uma quinta-feira ao almoço. Como acontece em muitos restaurante por aqui, a marcação envolve o pagamento do valor integral do menu. Vinho e outros extras pagam-se depois da refeição.

Marquei, paguei e cinco minutos depois o meu telefone tocou. Era do restaurante. Lamentavam, mas apesar de terem aceite a marcação não era possível receberem-me na quinta feira. Sugeriram que fosse almoçar no sábado. Tinha compromissos que não podia alterar para sábado, disse que era impossível, perguntei se não poderia ser sexta (em que o restaurante também estava aberto ao almoço). Disseram que me conseguiam acomodar na sexta. Desliguei e comentei com a minha filha que achava que eles não tinham mais marcações na quinta e por isso me estavam a mudar para sábado. Assim evitavam lá ir só por mim. Antes de sair para o almoço disse que tinha a sensação que não ia estar mais ninguém no restaurante na sexta também.

Cheguei um pouco antes da hora marcada e andei por ali a passear. O restaurante é numa antiga zona industrial, em que foram construído alguns edifícios novos ao lado de outros recuperados, ou não, alguns com muitos grafittis.

 

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Há  cafés. lojas e  zonas onde organizam feiras e exposições. Fui lá algumas vezes, em geral ao fim de semana, em que há muita gente. Naquele dia havia muito pouca gente e muitas lojas estavam fechadas. A sensação de que ia estar sozinha no restaurante tornou-se ainda mais forte.

Entrei, e a sensação tornou-se realidade. Tudo bem! Não tenho nenhum problema em estar sozinha num restaurante e não era a primeira vez que acontecia. Receberam-me no bar, em que as paredes estavam decoradas com graffitis, como aliás o resto de restaurante, quase tudo em preto e branco.

 

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Pediram-me que subisse para o primeiro andar.  Sentaram-me numa mesa perto do balcão da cozinha. De facto a mesa que é recomendada no Guia Michelin: ask for a spot on the mezzanine level opposite the open kitchen. A foto seguinte mostra o que via da mesa, e atrás do balcão estava o Chef. O chefe de sala entrava e saía de vez em quando pela porta do Ghost Train. Estávamos apenas os três no restaurante.

 

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Como era logo no topo da escada, nem percebi onde era a outra sala que tinha visto em fotos.

 

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Interroguei-me sobre qual a razão que os levaria a abrir à quinta e sexta ao almoço se não tinham clientes. Perguntei-me se valia a pena estarem ali os dois para me darem um almoço de 50 £. Tive a sensação de que estavam contrariados. O chefe de sala simpático, mas parecia em piloto automático, cara nº X, sorriso e conversa repetidos muitas vezes. Pode até ser que me engane, mas foi o que senti. Do outro lado do balcão, o Chef, que não olhava para mim que estava mesmo em frente dele. Era como se estivesse ali sozinho. Fui olhando à volta e questionando-me se aquela era a decoração ideal para um restaurante deste (e eu até gosto destas coisas), se criava um ambiente acolhedor. Tive dúvidas.

A comida foi chegando...

 

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The Brummie Welcome - soup & cake

 

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Wye Valley Aspargus - grapes, wild garlic burnt crust

 

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BBQ Hispi - togarashi, smoked butter, capers

 

e levantando a couve...

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Só faltavam dois pratos e o chef ainda não tinha sequer olhado para a mesa em que eu estava, a menos de dois metro dele, muito menos sorrido. O chefe de sala entrava e saía do comboio fantasma quando era necessário.

 

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Ethical Game Venison - black fig, massaman curry, chai milk bun

 

E de repente... Milagre! O chef põe um sorriso na cara e sai da cozinha com a sobremesa. E até deu dois dedos de conversa!

 

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1926 - Pedro Ximénez, raisins, almonds, Mayan Red

 

Mais do que isso... Pedi um café e ele veio também trazer um pequeno bolo de cenoura.

Mal acabei de beber o café, puseram-me a conta em cima da mesa para pagar quando quisesse. Não era preciso mandarem-me embora assim... Paguei logo!

A perceção que temos do que comemos depende de muita coisa para além do que está no prato. Os pratos eram bonitos e, em geral bons, alguns tinham coisas que podiam ser melhoradas, mas é o normal... Acho que tinha gostado bem mais sem a sensação, talvez infundada, de que era melhor eu não estar ali. E até é compreensível que achassem isso, mas então não aceitem marcações. Fechem ao almoço à quinta e sexta, tivessem-me dito que na sexta também não dava, que me devolviam o que já tinha pago e tinham todo o gosto em me receber noutro dia.

Um ou dois sorrisos durante o almoço, um serviço menos a despachar, não lhes tinha dado mais trabalho. Não sei se noutra situação voltava, talvez não, mas com tudo isto não vou voltar de certeza!

 

02
Mai25

Le Bleu - O Kiko quis fazer o que nunca tinha feito, e fez muito bem em fazê-lo, e o que fez é muito bom!

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Há algum tempo que andava a pensar ir ao Le Bleu - Fish Bar do Kiko Martins. Gosto dos espaços dos restaurantes do Kiko, sempre muito bonitos e em estreita relação com o que o restaurante oferece. Gosto em geral do que como. Como "conheci" o Kiko quando da sua viagem com a Maria pelo mundo, que fui acompanhando sempre através do site que tinham, viagem que de certa forma inspirou os conceitos de alguns restaurantes, compreendo a diversidade e acho-a coerente com o seu percurso de vida. Relativamente ao Le Bleu, tinha visto fotos e lido alguns artigo. Neles o Kiko dizia que no Le Bleu tinha feito tudo diferente do que, como cozinheiro, tinha feito até aí, e que esse tinha sido um processo muito estimulante.

Numa ida recente a Lisboa marquei um almoço. Cheguei a um espaço em Campo de Ourique mais pequeno do que tinha imaginado pelas fotos, mas cheio de luz e muito agradável. Ao olhar para a carta tudo parecia muito atraente e, como gosto de experimentar muitas coisas, até porque tão depressa não ia poder voltar, resolvemos ficar pelas entradas.

Para começar, um cocktail, uma versão modificada do Negroni Bianco, com uma enorme bolha por cima, que quando lhe tocávamos com a boca se desvanecia. Com ele chegou um amuse-bouche com uma base gelada coberta com cavala marinada.

 

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Adoro os couverts dos restaurantes do Kiko, são sempre bons, muito diversificados, únicos e, sobretudo, variam completamente de restaurante para restaurante. Este era brilhante!

 

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Brioche folhado, Gougère de Comté, Torradas de baguete, Manteiga com flor de sal, Dip de Anchovas e Espargos

 

Tudo era ótimo, mas aqueles espargos com o dip de anchovas eram maravilhosos! Mas não dispensava de todo o brioche folhado e os gougères.

Chegou depois uma sequência de entradas, bonitas, irreverentes, divertidas e sobretudo muito saborosas.

 

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"Nigiri" de Lírio e Marshmallow
 
 
Inspirado no nigiri japonês, mas em que o arroz é substituído por uma base, com a textura de um marshmallow, feita com um dashi. Lindo, inesperado e delicioso.

 

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Ostras da Ria Formosa

 

O sabor a mar da ostra, um creme de ostras levemente picante e uma casca comestível.

 

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"Sanduíche" de Barriga de Atum
 
 
Um "pão" que não era pão, mas uma espuma desidratada, com a textura de um suspiro, mas com sabor a algas e mar. Um recheio cremoso de barriga de atum, ovo de codorniz cozido, e alface. Come-se e suspira-se por mais...

 

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Gamba do Algarve com Tapioca Crocante
 
A gamba sobre um dado de tapioca (inspiração brasileira, do país onde o Kiko nasceu e onde viveu os primeiros anos) e coberta com uma divertida espinha crocante.
 

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"Bacalhau à Brás"

 

Mas isto é Bacalhau à Brás? Onde? Não é o clássico, nem era suposto (até estão lá as aspas). É uma homenagem do Kiko a esse prato maravilhoso. Mas este é igualmente maravilhoso, com a batata, o bacalhau, a gema de ovo e a azeitona com texturas e formas diferentes. Aquela gema, cozida a baixa temperatura, cremosa, que surgiu em vários couverts do Kiko é tão boa! (Algumas vezes não resisti a pedir um reforço.) 

Para acabar a sequência de entradas, nada mais apropriado para fazer a transição para as sobremesas...

 

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"Pastel de Nata" de Enguia
 
 
Para o tornar ainda melhor... bastava polvilhá-lo com o pó de alcaparras que o acompanhava.

Pelo meio desta sequência, ainda trouxeram uma nova entrada que estavam a desenvolver para provarmos. Uma pequena bola, que fazia lembrar uma Bola de Berlim, mas em que a parte da massa era relativamente fina, com um recheio de santola (acho...). Aprovado!

 

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Tinha chegado a hora das sobremesas.

 

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Carpaccio de Fruta e Gelado de Iogurte
 
 
Fresca e boa, na mesa ralavam sobre o carpaccio um bloco gelado de iogurte.
 

Mas a que me encheu mesmo as medidas foi a seguinte. Tão inesperada e única. Deliciosa!

 

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Mousse de Crème Fraîche e Granizado de Romã

 

O nome não deixava prever... O véu que cobre a sobremesa é um fino gel de espargos brancos e, misturado com a romã, estão pequenos cubos de espargos brancos. Uma sobremesa que até pode nem ser consensual, mas de que gostei tanto que não a esquecerei.

Ficaram os pratos principais por provar, mas valeu a pena, e este até é um bom motivo para voltar logo que possível. Vi-os passar para outras mesas e despertaram-me o interesse e o apetite.

O Kiko quis fazer o que nunca tinha feito, e fez muito bem em fazê-lo, e o que fez é muito bom! Ele diz que foi estimulante. Foi uma refeição que também me estimulou. Bons produtos, excelentes (não me venham falar do produto...).  Muita criatividade, muito bom domínio das técnicas, resultados com muita qualidade e a preços muito razoáveis. A isto ainda se junta a irreverência e o sentido de humor. Estava a precisar de tudo isto!

Parabéns ao Kiko, parabéns a toda a equipa!

 

Le Bleu - Rua Saraiva de Carvalho, nº 131, Lisboa

 

1ª Foto do Site do Le Bleu

 

 

 

17
Abr25

SÁLA de João Sá e a sua cozinha única que reflete identidade e local

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Há muito que queria voltar ao Sála do João Sá. Fui lá algumas vezes na altura em que abriu, mas estive uns anos sem voltar. Tentei marcar umas vezes, mas com pouca antecedência, e nunca consegui. Finalmente planeei bem as coisas e num sábado recente almocei na primeira mesa que se vê na foto acima.

O mesmo espaço simples, mas acolhedor e elegante, com detalhes que lhe dão personalidade, com a cozinha à vista e a porta diretamente para a rua. Contudo, a comida oferecida mudou muito. Apesar de em visitas anteriores ter gostado bastante, o nível da cozinha do João Sá agora é outro, reflete uma maior maturidade, que justifica a estrela Michelin atribuída ao restaurante há cerca de um ano. Optei pelo menu "À procura de nova texturas" um menu que o João Sá diz traduzir a sua visão de Lisboa, que considera ter uma culinária vibrante resultante da influência das viagens, de que era ponto de partido e chegada, e de quem chegou vindo de outras paragens. Assim, todos os sabores do mundo que confluíram em Lisboa, bem como a ligação de Portugal com o mar, e em particular o Oceano Atlântico, influenciaram este menu.

Ao chegar serviram-me um caldo, inspirado no caldo verde. Se visualmente não era possível relacioná-los, o sabor denunciava a fonte de inspiração. Um sabor conforto que preparava para a aventura que se seguiu.

 

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Caldo verde, Óleo de Algas, Pimentão Fumado

 

Foi então servida uma sequência de pequenos pratos caracterizados por uma apresentação muito cuidada, sabores fortes, texturas variadas e muito bem trabalhadas.

 

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Berbigão na Caruma

 

Gosto muito de berbigão, este tinha um sabor levemente fumado, e o caviar contribuía com uma componente salgada, um reforço do umami, e o seu sabor complexo, que elevavam o berbigão para outro nível.

No início serviram-me um Champagne, mas os pratos seguintes foram acompanhados por vinho branco, o Insula - Arinto dos Açores, 2018.

Trouxeram em seguida uma misteriosa caixa com o logo do restaurante. Lá dentro um pequeno snack, uma muamba de galinha servida entre duas folhas crocantes de pele de galinha desidratada.

 

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Muamba de Galinha

 

A gamba que se seguiu era lindíssima, visualmente e em termos de sabor, sendo servida entre duas placas crocantes, cujo formato lembrava algas, mas com um sabor a pimentão.

 

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Moqueca de Gamba

 

O mar também estava presente no prato seguinte.

 

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Ostra, Caldo de Cebola, Gotas de Cavala

 

Esta sequência de pratos foi interrompida por um momento mais terra a terra e com características bem diferentes. Um corte bem vindo, que preparou os sentidos para poder desfrutar bem da complexidade de todo o resto do menu.

 

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Pão,  Manteiga Caramelizada, Azeite Metáfora de Trás-os-Montes.

 

Seguiram-se dois pratos de marisco deliciosos. Um primeiro refletia influências de sabor de outras paragens, sendo o umami da santola complementado e intensificado com o das ovas. No segundo, o sabor do marisco era complementado com notas doces do caramelo e da castanha.

 

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Santola, Caril Goês, Harissa

 

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Lavagante, Caramelo, Castanha

 

Depois de tanto "mar" chegou a altura da "terra", num prato delicioso de cogumelos. Curiosamente um ingrediente também com alto teor de umami. Em japonês a palavra umami significa delícia. E por muitas e variadas razões estes pratos eram deliciosos.

 

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Fricassé de Cogumelos, Morilles, Trufa Preta 

 

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Cuscos, Coentrada, Bivalves

 

O prato de cuscos é visualmente muito impactante. Tanto que é um dos pratos referidos no texto que surge no Guia Michelin sobre o Sála. Referem-no como sendo um prato tecnicamente simples, mas tremendamente visual e saboroso que os encantou pela sua forma de combinar os cuscos, que ficam completamente verdes, com o mar. A mim também me encantou.

Com os pratos seguintes bebi um vinho do Douro, o Indie Xisto tinto, 2021. Com ele chegou um prato mais arriscado, uma caldeirada de enguias. Gostei muito! O sabor da caldeirada é um sabor muito nosso.

 

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Enguia, Caldeirada, Alho Negro

 

Era possível vir um prato ainda mais delicioso? Ele aí estava, imponente e um luxo!

 

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Robalo, Espargos Verdes, Caviar

 

O último prato salgado era visualmente mais estranho e difícil de identificar. Mas o sabor denunciava-o, era um arroz de polvo com algas.

 

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Polvo, Algas, Arroz

 

Tinha chegado a hora das sobremesas. Na primeira, um gelado com um ingrediente pouco comum, a calabaceira, também conhecida por baobá. Um ingrediente que, tal como outros sabores em pratos anteriores, reflete as origens angolanas do João Sá e as suas memórias de sabores. Acompanhava-o um pequeno recipiente com pedaços da polpa da calabaceira, para nos podermos familiarizar com ela se assim o desejássemos.

 

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Calabaceira | Mangericão |Lima

 

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Tomilho | Azeite | Brioche

 

Com o chá chegaram alguns petit fours, mas o serviço estava a terminar e o João Sá veio à mesa e ficámos a conversar algum tempo. Nem me lembrei da foto. Mas valeu a pena, é que a conversa foi quase tão boa como o almoço.

Impressionante o funcionamento da cozinha mesmo ali ao lado, tudo corre de forma calma e eficiente. Um bom serviço de sala é fundamental para uma boa experiência, e o do Sála foi muito bom e muito simpático.

A cozinha do João Sá evoluiu muito, sente-se uma grande maturidade. Reflete muito as suas memórias de sabores, e as nossas também, e gostei muito disso. A comida é central para a identidade, individual e do grupo, e é interessante pensar no que define as características de uma cozinha de um dado país / cultura. É um assunto complexo! Não é necessariamente a componente visual, nem os ingredientes, embora estes possam também ser importantes. Mas há notas de sabor que funcionam como marcadores, referidas num artigo de Claude Fischer, de que falei num outro post, como "princípios do sabor", e que são complexos olfativos e gustativos típicos de uma determinada culinária. É sobretudo isso que na cozinha do João Sá define a identidade e o local, uma cozinha que só pode estar ali, que é única.  

 

SÁLA - Rua dos Bacalhoeiros, 103 - Lisboa

 

1ª foto do site do restaurante

19
Mar25

Portugália - 100 anos!

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A primeira vez que fui à Portugália, na Almirante Reis, foi com o meu Pai, tinha 10 anos. Cada vez que lá entro olho para a mesa em que nos sentámos dessa vez. Há quase nove anos relembrei essa visita AQUI. Hoje é dia do Pai, e ao lembrar o meu (que acho que teve muita influência no meu gosto pela comida e por comer), lembrei-me que recentemente fui almoçar à Portugália e, ao olhar para a dita mesa, recordei essa primeira visita. Tudo isto me deu vontade de escrever hoje sobre a Portugália.

A Portugália é um restaurante que para mim representa mais do que apenas a comida que serve, é um restaurante que ocasionalmente frequento há muitas décadas, e a que tenho alguma ligação emocional. Recentemente, para comemorar o centenário desta cervejaria, fizeram obras e introduziram algumas mudanças. Sei que as alterações foram muito pensadas, que consultaram pessoas da área da gastronomia e clientes. Que tiveram em conta opiniões sobre o que foi feito na Trindade que, do meu ponto de vista,  teve alguns aspetos menos conseguidos.

Estava curiosa sobre o que aconteceria com a Portugália. Estive lá em Agosto e voltei este mês. As primeiras impressões foram boas. Penso que, sem ser descaracterizado, o espaço ficou mais bonito, mais atual e com mais dignidade.

 

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Das duas vezes muitas mesas ocupadas, o mesmo tipo de clientes, quase todos portugueses, que frequentavam habitualmente este espaço. Caras que vão mudando, mas um serviço de sala que continua eficiente e simpático. Nesta nova fase, continuo a sentir-me na Portugália, "em casa", e (ainda mais) confortável.

O menu mantém todos os pratos que os habituais clientes da Portugália procuram, só notei a falta dos rissóis de camarão. Continua a haver a introdução de novas opções (como acontece há já alguns anos) muito baseadas em pratos tradicionais, e que diversificam opções e atraem outros públicos. Houve mesmo a introdução de uma opção vegetariana (Cogumelos à Brás) e outra vegana (Burguer). O preços são razoáveis.

 

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As minhas escolhas recaem em geral no que está mais relacionado com as minhas memórias das muitas refeições que aqui tive, os croquetes com mostarda, um prato de camarões ou percebes, os bifes, e quase sempre o Pudim Flan a que chamam "o clássico" e que ocupa o primeiro lugar na lista de sobremesas.

A Portugália envelheceu bem. 100 anos é uma bela idade! Que viva por muito mais anos e nos proporcione este ambiente, e esta oferta tão portuguesa (ou lisboeta) e com que tanto nos identificamos.

 

 

 

06
Mar25

Sardinhas em Sheffield

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Há exatamente 34 anos estava a fazer um pós-doutoramento na Universidade de Leeds, estava integrada no projeto "Design Racional de Moléculas Envolvidas em Situações de Reconhecimento Molecular", que estava a arrancar. O projeto era liderado por uma investigadora que vivia em Sheffield. No ano em que trabalhei no projeto, e nos anos que se seguiram, em que mantive alguma colaboração, Sheffield era uma cidade frequentemente referida. Nunca tinha ido a Sheffield, durante o ano de pós-doutoramento não fui lá (apesar da viagem de comboio durar menos de 1 hora), posteriormente também nunca visitei a cidade. Não tinha nenhuma imagem de Sheffield. Recentemente, andava a precisar de uns dias de descanso, olhei para o mapa do UK para escolher onde poderia ir passar um fim de semana, e Sheffield foi a escolha. Uma cidade não demasiado longe, não demasiado grande ou pequena, hotéis com preços razoáveis, e alguns restaurantes que poderiam ser interessantes.

 

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Depois de um passeio por Kelham Island, outrora a zona de produção da indústria de cutelaria e aço de Sheffield, a que agora zonas residenciais, pubs, cafés, lojas e restaurantes independentes deram uma nova vida, fui almoçar a um dos restaurantes que me tinha parecido interessante, o Native, um restaurante cuja oferta se centra em peixe e mariscos. Tinha lido algumas coisas sobre o restaurante e achei interessante que fosse de uma empresa que comercializa peixe, a J H Mann Fishmongers, uma empresa fundada em 1921 e que durante quase 100 anos pertenceu à mesma família. Christian Szurko, chefe de cozinha e dono atual da empresa, trabalhava em Sheffiled e, em 2005, decidiu ficar com a empresa e empenhar-se em continuar a manter o nível de qualidade e excelência dos produtos. Depois da pandemia decidiram que a empresa, para além do comércio de peixe,  tivesse também um restaurante, e em 2021 o Native abriu tendo com linha de orientação o seguinte: “Os produtos do mar devem ser frescos, honestos e tão dinâmicos quanto as águas de onde vêm”.

 

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Uma decoração atraente, com um cozinha aberta, vestígios de um ambiente  industrial com paredes de tijolos à vista, aço exposto e tetos altos, complementados com um conjunto de quadro com cores fortes e móveis de madeira. Há um menu regular com propostas mais ou menos clássicas, e outro com uma oferta que vai variando e é apresentado num quadro, com pratos mais criativos. 

 

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No quadro apareciam umas Grilled Sardines - Puntarelle, Anchovy, Chilli and Preserved Lemons, associo sempre sardinhas a uma certa nostalgia, e outras formas de as apresentar deixam-me sempre curiosa. Não fazia a menor ideia do que era puntarelle, uma pesquisa rápida e fiquei a saber que era um tipo de chicória. Mais, que era usada numa salada tradicional italiana com anchova, alho, azeite, vinagre e sal, suspeitei que de certa forma esta poderia ter inspirado o acompanhamento das sardinhas. Estava decidido! Apetecia-me o sabor a mar das ostras, e não resisti à focaccia com óleo de lagosta e óleo de algas.

 

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Produtos frescos e muito bem tratados. Interessante a foccacia com os dois óleos com aromas marinhos. Mas o melhor foram as sardinha. O conforto do seu sabor característico, um excelente ponto de cozedura que as deixava com uma textura muito agradável, o exotismo do tempero, e um acompanhamento fresco e saboroso, resultaram num excelente prato.

Apeteceu-me experimentar outra coisa e a escolha recaiu no Mussel Crumpet - Mussels, Garlic Butter, Monks Beard. 

 

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Um prato muito guloso, e um pouco mais pesado também, com o crumpet bem ensopado com a manteiga de alho. A monk's beard  (Salsola Soda) uma planta halófita, um pouco crocante e com um sabor herbáceo, semelhante a espinafre, e levemente salgado, contrastava com a riqueza do prato e complementava-o muito bem.

Seguiu-se uma tarde no centro da cidade.

 

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No fim do dia já tinha uma imagem, e até sabores, de Sheffield.

 

 

23
Jan25

Uma "viagem" à Indonésia inspirada pelas aventuras do Homem que Comia Tudo

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É bom viajar à mesa! É bom descobrir outros lugares e culturas. As suas cozinhas, e tudo o que estas transmitem, são um meio excelente para o fazer. É bom descobrir novos produtos, sabores e técnicas culinárias, descobrir o engenho e arte usado para transformar de formas tão diferentes os vários ingredientes. Tenho viajado à mesa em Lisboa, aliás, faço-o em qualquer lugar onde esteja. Nos últimos meses tenho-o feito de uma outra forma, tenho acompanhado o Ricardo Dias Felner na sua viagens à mesa em Lisboa. Não perco um episódio de O Homem que Comia Tudo, na SIC Notícias. Permitiram-me fazer uma sucessão de descobertas: de uma Lisboa cada vez mais cosmopolita e aberta ao mundo, de outras culturas gastronómicas, de sabores e técnicas, e de lugares a experimentar (tenho uma lista de todos os restaurantes). Está a acabar a segunda série, e já espero com ansiedade por mais.

Alguns restaurante, não muitos, já conhecia. A maioria tenho vontade de conhecer. Por isso, recentemente, fui a um deles, o Bali do Cais, um restaurante de comida da Indonésia  no Cais do Sodré.

 

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Comi o Beef Randang, um prato de vaca, cozinhada lentamente em leite de coco com malaguetas, gengibre, erva príncipe, folhas de lima kaffir, várias especiarias e coco ralado, que tinha visto a Rici Amélia a cozinhar e o Ricardo a comer. Uma carne que se desfazia, um molho com sabores fortes, sabores que nos levam para outra paragens.

 

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Mas, o que me encheu mesmo as medidas foi a entrada, o Batagor, com a sua variedade de texturas e aromas. Um prato com wonton frito, tofu recheado com peixe, molho de amendoim, kecap manis (um molho de soja doce, muito usado na cozinha da Indonésia) e lima.

 

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Logo que possa farei mais viagens à mesa em Lisboa, inspirada pelo O Homem que Comia Tudo. Espero que entretanto chegue a 3ª série, porque vale mesmo a pena acompanhar o Ricardo Dias Felner nestas aventuras por uma Lisboa que precisamos conhecer melhor.

 

Bali do Cais - R. Bernardino Costa 21, Lisboa

 

 

21
Jan25

Cozinha Egípcia no Masrawy Café & Restaurant

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Durante alguns meses passei várias vezes à porta do Masrawy Café & Restaurant, um restaurante egípcio que tinha aberto numa zona onde vou frequentemente. Parei até algumas vezes para ler um cartaz na porta que falava de um dos pratos que serviam, o Koshari. Dizia que era considerado o prato nacional do Egipto, servido em praticamente todos os restaurantes, casas e até como comida de rua. Contudo, tinha as suas raízes na Índia, e o nome até derivava da palavra hindu khichri, que designa um prato de arroz e lentilhas. Confesso que a descrição do prato, não o tornava particularmente atraente - uma mistura de massa, arroz, lentilhas, grão-de-bico, cebola e molho de tomate. Mas se era tão popular, algum interesse deveria ter. Porém, estava a ser difícil entusiasmar os meus potenciais acompanhantes para lá ir. Até que um dia eu disse: "É Hoje!".

Entrámos num espaço com uma cozinha à vista, alguns elementos de decoração típicos do país, e várias frases escritas na parede, a maioria em árabe, mas uma dela mandava-nos sorrir. Foi isso que fiz, e o sorriso foi sendo cada vez mais rasgado à medida que ia comendo pratos que me surpreenderam, e até com ingredientes que desconhecia.

Começaram por trazer um cesto de pães baldy deliciosos, e Taamaya, referido como o falafel egípcio, servido com molho de tahini e torshi (uns coloridos e deliciosos pickles de vegetais). Já comi muita vezes falafel, alguns muito bons, outros nem tanto, mas este era diferente. Sabia a favas. Foi uma surpresa! Fui para ali sem saber absolutamente nada de comida egípcia (o que por vezes até pode ser um vantagem), e no Egipto o falafel é feito com favas secas em vez de grão, como é habitual noutro países. Gostei tanto que foi uma da principais razões para já ter voltado ao restaurante.

 

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De seguida veio o Foul Madames, favas guisadas, com um molho de tahini, azeite, limão, salada e pickles.

 

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Chegou então o prato mais surpreendente da refeição - o Molekheya. A descrição do prato dizia: folhas de malva cozinhadas lentamente num caldo de legumes e polvilhadas com alho assado e coentros picado, servido com arroz.

Estava à espera de um vegetal em folhas, elas estavam lá, mas muito moídas. Era um caldo muito viscoso, servido com arroz de aletria e os omnipresentes pickles. O prato tinha características completamente inesperadas. Deixou-me confusa. Provei e era muito saboroso, comemo-lo com agrado.

 

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A planta usada (Corchorus olitorius) é conhecida pelo mesmo nome do prato no Egipto. É, de facto, a juta usada para têxteis, em que a parte comestível são as folhas, ricas em nutrientes e a que são atribuídas propriedades medicinais. Podem ser usadas frescas ou secas, acredito que teriam sido usadas folhas secas. 

Há muitos anos, na Cozinhomania, fui a uma aula de comida libanesa, em que fizeram o arroz que acompanhava este prato. De vez em quando faço-o. A aletria em pedacinhos é primeiro salteada no óleo até ficar torrada, o que lhe vai dar um sabor tostado interessante, depois adiciona-se a água e o arroz. Fica bonito e bom. 

Finalmente veio o Koshari, arroz, dois tipos de massas (uma aletria e macarrão), lentilhas, grão, cebola frita bem dourada, e um saboroso molho de tomate com especiarias. Ao lado, uma molheira com mais molho de tomate e mais dois molhos um picante e outro, o Daqua, um molho ácido, com vinagre e limão, e com alho e cominhos. Esta mistura de componentes temperada com os molhos resultava num prato muito saboroso.

 

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Uma refeição muito agradável, uma refeição de descoberta de novos sabores e combinações, uma viagem à mesa muito rica. 

Um dia em que se tem oportunidade de comer algo desconhecido e pouco comum é sempre um bom dia! 

 

17
Jan25

A multidimensionalidade do que comemos - do biológico ao cultural, do individual ao coletivo

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Recentemente li o artigo Food, Self and Identity de Claude Fisher, em que ele discute a enorme complexidade da nossa relação com a comida. Uma relação que tem um carácter multidimensional - comportamental e cognitivo, psicológico e cultural, individual e coletivo. Ele refere que a forma como um dado grupo come ajuda a afirmar a sua diversidade, hierarquia e organização e, ao mesmo tempo, tanto a sua unicidade quanto a alteridade de quem come de forma diferente. A comida também é central para a identidade individual, pois qualquer indivíduo é construído, biológica, psicológica e socialmente pelos alimentos que escolhe consumir.

Claude Fischer  constata que a forma como se transformam os alimentos não é exclusivamente de natureza material, já que uma culinária também opera no registo da imaginação. Consequentemente, constitui uma ponte entre Natureza e Cultura. A comida e a culinária são assim um elemento central na perceção de pertencimento coletivo. Tanto que em situações de migração se observou que certas características da culinária são às vezes retidas mesmo quando a própria língua foi esquecida.

Ao ler o artigo lembrei-me que quando no Natal toda a família está reunida, no jantar de dia 24 normalmente comemos bacalhau assado em forno de lenha, com batata assadas, couves e grão. Há alguns elementos da família que são vegetarianos, ou mesmo veganos, e fazem questão de comer algo muito semelhante. Portanto comem um tofu marinado com alho e algas, e em que é usada alga nori para dar um aspeto idêntico ao da posta de bacalhau com a pele. Entre os vários tabuleiros que vão para o forno (somos quase 30) há um idêntico, mas com o tofu em vez de bacalhau. Uma refeição destas é uma ocasião de comunhão, inclusão e partilha. O facto de comerem algo idêntico contribui para que se sintam integrados nos rituais gastronómicos da época, e reforça o sentimento de pertença.

Aliás, Claude Fischer diz, embora num outro contexto, que a novidade, o desconhecido, pode ser integrado na tradição e desta forma a originalidade é moderada pela familiaridade e a monotonia aliviada pela variedade. E, citando outros autores (E. e P. Rozin), diz ainda que "princípios do sabor", certos complexos olfativos e gustativos típicos de uma determinada culinária, podem funcionar como marcadores, tornando um prato reconhecível e, portanto, aceitável mesmo que alguns dos outros ingredientes sejam estranhos ao sistema. Dado que, em muitas  sociedades e culturas, recusar comida oferecida equivale a rejeitar o relacionamento, a afastar-se do grupo, esta pode ser uma via de inclusão.

Lembrei-me também de um almoço recente, com a minha filha que é vegana, no restaurante A Minha Avó em Lisboa. Um restaurante 100% vegano mas em que os pratos e os sabores são muito portugueses, muito baseados na "cozinha da Avó". Mudar a forma de alimentação, rejeitando determinados alimentos, não tem que implicar uma rejeição da cultura do grupo a que se pertence e em particular da sua cultura alimentar e aqui a culinária, e o engenho e arte de quem cria os pratos, desempenham um papel fundamental. No A Minha Avó fazem-no de forma brilhante! 

 

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Estaladiços de “alheira” e espinafres

 

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Croquetes de "carne" com maionese picante

(feitos de soja e tofu)

 

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Peixinhos da horta

 

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Arroz de "polvo"

(cozinhado num caldo feito com algas e com cogumelos eryngii e shimeji)

 

De facto, a culinária é um marcador do nosso lugar no mundo, da nossa identidade. Como diz Claude Ficher,  a ordem que ela constrói e aplica é inseparável da ordem do mundo que a cultura como um todo constrói.
 
Por tudo isto não consigo compreender como é que por vezes se ouve dizer (até a pessoas profissionalmente ligadas ao mudo da gastronomia) "Porque é que a comida vegana imita?". Uma reflexão mais aprofundada sobre o que é comer e a multidimensionalidade da nossa relação com a comida  dará uma resposta.
 
 
(O Bitoque e Arroz de "Polvo" da 1ª foto também são do A Minha Avó)
 
 
A Minha Avó - Av. António Augusto de Aguiar - 74B
 
 
 

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