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Assins & Assados

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18
Fev24

Queijo e vinhos ingleses e ainda a crise climática

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Vou ao Grace & James frequentemente. Por vezes ao fim da tarde para beber um copo de vinho, outras vezes para algumas provas de chocolates ou queijos e vinhos, muitas vezes para beber dos melhores cafés que conheço no Flock (um espaço independente dentro da loja) ou, de vez em quando, para comer um excelente ramen no Koba-Ko (um restaurante independente que agora ocupa o 1º andar). Vi o Grace & James abrir em 2018, um projeto interessante, que foi variando ao longo do tempo para se adaptar, e cedendo alguns espaços a outros negócios independentes.

 

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Recentemente estive lá numa interessante prova de queijos e vinhos ingleses.

 

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Extra Mature Red Leicester, Warwickshire / Sinodun Hill, Herefordshire / Edmund Tew, Kent / Stichelton, Nottinghamshire / Baron Bigod, Suffolk / Ashcombe, Gloucestershire (começando no laranja e no sentido dos ponteiros do relógio)

 

Queijos muito bons, uns originalmente ingleses, outros produzidos em Inglaterra, mas inspirados em queijos franceses (por exemplo o Baron Bigod é inspirado no Brie, ou o Ashcombe inspirado no Morbier). Com os queijos foram servidos seis vinhos, o espumante Sov'ran Imperial Cuvée produzido em Sussex com uvas Pinot Noir de Kent e Chardonnay de Sussex,  três vinhos da Astley Vineyard (Saint Vincent (que de facto não é um vinho, é produzido juntando água às cascas das uvas  e fermentando - um piquette) e os brancos Severn (um vinho seco de um blend de Bacchus, Madeleine Angevine e Siegerrebe) e Brigid (um vinho doce de Late Harvest Kerner)), um tinto, o Diamond Fields Pinot Noir da Davenport Vineyards em Sussex, e um rosé, o The Field Blend de Matt Gregory.

Uma experiência muito interessante, em que falámos dos produtos e produtores, métodos de produção de queijos e vinhos, da evolução dos vinhos ingleses que, em particular devido às alterações climáticas, vão sendo cada vez melhores, mas sendo ainda mais caros que vinhos do mesmo nível de outras proveniências. Os espumantes já atingiram um elevado nível de qualidade, li depois que nalgumas provas cegas já foram melhor avaliados dos que alguns champanhes, e os tintos são os que ainda têm níveis mais baixos de qualidade.

Foi referido o facto de alguns dos grande produtores de Champagne estarem a comprar terrenos em Inglaterra, pois com o aquecimento global o clima em França está a começar a ficar demasiado quente para cultivar as uvas para o champanhe e os franceses tiveram de começar a procurar locais alternativos com clima mais frio. Tanto o solo quanto o clima no sudeste da Inglaterra são bastante adequados para o cultivo das uvas que começam a ter mais dificuldade em produzir em França. Confirmei depois estas informações num artigo publicado o ano passado, em que se refere nomeadamente que o clima no sudeste de Inglaterra é idêntico ao de Champagne há 30 anos, tendo ainda essa região um solo calcário de boa drenagem que permite a produção de uvas para espumante. Diz-se ainda que a Pommery foi a primeira empresa a comprar terrenos em Inglaterra (40 hectares em 2016) para produzir uvas das castas mais usadas no champanhe, Chardonnay, Pinot Noir e Pinot Meunier. Esta empresa, inclusivamente, já  lançou um espumante inglês, considerando que usar a experiência secular de Champagne em Inglaterra lhes permitirá obter bons resultados.

Uns dias depois li um artigo (No more chocolate, coffee or wine? "Last supper" shows stakes of climate crisis) no The Guardian sobre jantares que têm sido feitos, em particular nos EUA, para sensibilizar para o efeito das alterações climática na nossa alimentação e na agricultura, mas também como os sistemas alimentares, um dos principais impulsionadores das alterações climáticas, podem ser adaptados para evitar os resultados mais extremos. Os pratos são confecionados com produtos comuns que em breve podem mudar drasticamente, tornar-se muito mais caros, ou mesmo desaparecer. Por exemplo, nos casos do vinho, café e chocolate, podem ocorrer grandes perdas nas colheitas apenas com um ligeiro aquecimento, tornando estes produtos raros e caros, e afectando assim não só a nossa qualidade de vida e identidade, como também os meios de subsistência e os modos de vida de muita gente. Pequenos declínios em produtos básicos podem originar choques económicos, maior insegurança alimentar, mudanças migratórias e conflitos.

Isto acontecerá num futuro bem próximo, por exemplo o café precisa de um clima estável, com noites frescas e dias quentes, e com um aquecimento de  2ºC até 2050, metade das regiões que cultivam café deixariam de ser adequadas. É também referido que se nada mudar, a produção de cacaueiro será eliminada até 2050.

Assuntos que dão que pensar, sobretudo porque a forma de nos alimentarmos é um aspeto profundamente enraizado e fundamental da nossa identidade e bem estar. Vai ser preciso libertarmo-nos de muitos preconceitos, e também muita abertura e criatividade para lidar com tudo isto, e para tal é essencial investir na investigação científica para produzir conhecimento e alternativas, e ainda na formação para transmitir conhecimento essencial para novas práticas alimentares.

 

2ª Foto DAQUI

 

 

30
Set22

Leite sintético - prós e contras de um produto que poderemos consumir num futuro próximo

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Todos os dias nos chegam sinais de que a forma como nos alimentamos está a mudar, e que mudanças drásticas virão no futuro. Todos vamos entendendo que elas são inevitáveis com uma população mundial a aumentar e com a crise climática. Na sequência do post sobre desperdício de leite, faz sentido abordar a produção de leite sintético. Este já não é apenas uma produto do futuro, ele está aí, mas ainda sem capacidade de competir com a produção tradicional de leite.

Em dezembro de 1931, num texto que escreveu para a Strand Magazine, intitulado Fifty Years Hence (que vale a pena ler e refletir um pouco sobre o que é dito), Winston Churchill,  refere como o conhecimento científico foi decisivo ao longo dos anos para permitir que milhões de pessoa pudessem ter uma vida mais segura, variada, cheia de esperança e escolhas, e também sobre a evolução que previa para as cinco décadas seguinte. Nesse texto dizia: 

Os micróbios, que atualmente convertem o azoto do ar nas proteínas que permitem aos animais viverem, serão usados e postos a trabalhar sob condições controladas, da mesma forma que a levedura de padeiro o é agora. Serão desenvolvidas novas linhagens de micróbios que farão uma parte considerável dos  nossos processos químicos em nosso benefício. […] Escaparemos do absurdo de criar uma galinha inteira para comer o peito ou a asa, cultivando essas partes separadamente em meio adequado. Naturalmente, os alimentos sintéticos também serão usados ​​no futuro. Nem os prazeres da mesa precisam ser banidos. […] Os novos alimentos serão, desde o início, praticamente indistinguíveis dos produtos naturais, e quaisquer mudanças serão tão graduais que escaparão à observação.

Já passaram 90 anos, ainda não estamos bem aí, mas quase, a carne cultivada está a ser desenvolvida, e o equivalente a carne picada ou frango para nuggets, já é uma realidade, a preço cada vez mais razoáveis, mas ainda sem possibilidade de ser comercializada em larga escala e de forma competitiva. Mas lá se chegará a médio prazo. No caso do leite sintético é mais fácil do que no da carne, pois não há os problemas de textura e construção de tecidos… da carne.  

A produção de leite sintético, não requer vacas ou outros animais, mas este tem uma composição bioquímica semelhante à do leite animal e terá sabor, aspeto e textura semelhantes também. É produzido usando uma tecnologia denominada fermentação de precisão em que os micro-organismos produzem proteínas idênticas às do leite (proteínas do soro e caseína). Estudos realizados demonstraram que estas são as principais responsáveis pelas características de sabor e textura do leite, assim como pelas propriedades que permitem a produção de uma vasta gama de lacticínios. Posteriormente as proteínas produzidas no processo de fermentação são misturadas com água e são adicionados minerais, gordura, açúcar (não necessariamente a lactose, o que permite o seu consumo por intolerantes à lactose) e aromas.

 

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Já são produzidas proteínas numa escala relativamente grande, que são usadas nos EUA para produção de gelados e leite, ou queijo mozzarella. Na Austrália também já é produzido leite sintético por este processo. Espera-se que, em menos de uma década, o leite sintético fique mais barato que o leite de origem animal e possa ser consumido por si só, ou utilizado pela indústria alimentar.

As vantagens são muitas, este leite, não recorrendo a nada de origem animal, é compatível com uma grande variedade de opções alimentares, e não envolve problemas éticos relacionados com o sofrimento dos animais. Por outro lado, a pegada ambiental é bem menor, pois evita-se o problema da libertação de metano pelas vacas, assim como o da produção de alimentos para elas, portanto libertando terras para outras produções, e havendo menor consumo de água. Acredito que, destes pontos de vista, terá também vantagens relativamente às inúmeras bebidas à base de vegetais que têm vindo a substituir o leite para muitos consumidores. Tendo em conta que 80% da população mundial consome regularmente lacticínios, o impacto pode ser grande.

Tem ainda um efeito importante, tendo proteínas idênticas às do leite, e portanto com a mesma funcionalidade, permitirá manter as tradições de muitos países, por exemplo as da produção de queijo, apesar da transição para dietas baseadas em plantas.

Mas, não há rosas sem espinhos, e nesta transição os espinhos também são muitos… vai ter um impacto grande na produção de lacticínios. Ainda há um caminho relativamente longo a percorrer, que vai precisar de grandes investimentos, pesquisa e construção de infra-estruturas para produção, até  que possa ser uma alternativa aos produtos tradicionais em larga escala. Mas é um processo que certamente ocorrerá e que terá grande impacto nos produtores de leite tradicionais. As grandes empresas de lacticínios, prevendo a importância desta tecnologia no futuro, começam a investir neste tipo de investigação e no futuro iniciarão certamente a produção de leite sintético de forma a fornecer os seus mercados.  Não que a produção tradicional de leite vá desaparecer completamente, mas certamente a escala será menor e os processos de produção também menos intensivos, e o leite produzido será considerado um produto premium.

Hoje estes produtos ainda causam estranheza a muita gente. Até alguma rejeição. Mas, como também dizia W. Churchill no tal artigo:

Todos nós aceitamos as conveniências e facilidades modernas à medida que nos são oferecidas, sem sermos gratos ou conscientemente mais felizes. Mas simplesmente não poderíamos viver sem elas.

 

1ª Foto DAQUI

2ª Foto DAQUI

15
Set22

As minhas experiências em restaurantes de sobremesas

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À minha frente estava o meu Spanish Iced Latte, a tarefa seguinte era construí-lo a partir das partes. Depois bebê-lo.  Era a minha primeira experiência num dos muitos restaurantes de sobremesas que via um pouco por todo o lado no UK, uma realidade que até há pouco desconhecia, ou pelo menos de que não tinha tomado consciência, nem entendido.

Primeiro intrigou-me o número de restaurantes de sobremesas, sobretudo em determinados bairros e cidades. Depois o horário de abertura, quando a maioria das coisas fecha pelas 16 horas, eles abrem por essa hora mais ou menos e estão abertos até tarde, e até muito tarde durante o Ramadão. Tinham todos interiores relativamente glamorosos, claro que uns mais que outros. Depois comecei a ver que nos clientes havia uma percentagem elevada de jovens muçulmanos.

Com alguma busca, finalmente comecei a entender. Muitos jovens muçulmanos não vão pubs ou bares onde vendem álcool, e são este os locais onde se encontram com os amigos, nestes espaços fazem parte da sua vida social, são também locais adaptados para saídas em família. Também lhes permitem não estar preocupados com o facto de as sobremesas terem algum ingrediente que não seja compatível com as suas dietas (por exemplo gelatina). Há ainda outros espaços idênticos, pelo que entendi mais dirigidos para hindus vegetarianos, que não comem ovos pois são potencialmente seres vivos e portanto não são considerados vegetarianos. Nestes os bolos têm leite, natas, mas não têm ovos. No resto parecem-me terem características idênticas. Os espaços são atraentes, sofisticados, e luxuosos (pelo menos alguns deles). Com as bebidas e as sobremesas passa-se o mesmo, prometem momentos especiais, mais do que alimentar pretendem proporcionar experiências.

Há tempos, passei à porta de um destes restaurantes de sobremesas, junto a um poster, no exterior, com uns apetitosos mocktail, estavam duas jovens muçulmanas, e uma delas dizia "Tenho que beber isto!". Foi isso que eu também disse quando olhei para o menu, um espesso livro com muitas páginas de um papel de qualidade e muito ilustrado, num Heavenly Desserts e vi a foto do Spanish Iced Latte e a sua descrição "Our spin on the Spanish Iced Latte. Espresso ice cubes, steamed milk and sweet condensed milk are combined to deliver a decadent coffee-based beverage like no other.".

 

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Precisava mesmo daquela experiência! Primeiro o encantamento com a apresentação. Bolas... um erlenmeyer não tem nada de original para mim, mas aquele com o leite exercia uma enorme atração. Ainda bem, pequenos prazeres que são importantes. Misturei tudo e o meu Spanish Iced Latte soube-me maravilhosamente bem!

Há tempos abriu um espaço destes num bairro onde vou frequentemente, o The MilkCake Man. Olhando para o instagram deles prometiam um luxo de sobremesas... Passei lá, o espaço não era tão luxuoso como o que o instagram e as sobremesas levavam a prever... Será que as sobremesas estavam à altura das fotos ou do espaço? A primeira foto que vi de sobremesas deles foi da Cherry Blossom Tree, e quando a vi também pensei "Tenho que comer isto!". Levei muitos meses até lá ir... mas um dia, finalmente, tinha a minha Cherry Blossom Tree...

 

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Nada como satisfazer um desejo... mesmo que seja um pouco infantil... E a sobremesa também o era. Um gelado de uma mistura comercial (que precisava de estar um pouco mais frio), bolachas Oreo esmagadas, um biscoito de chocolate e uma nuvem de algodão doce cor de rosa vivo. O copo de um plástico não muito forte, a colher de plástico... Não esteve à altura do interesse que despertou (para dizer a verdade nunca tive muitas expetativas). Mas um desejo satisfeito abre lugar para outros, mais interessantes, ou não... O que importa? 

 

 

26
Ago22

Baobá Café - onde um café é sempre muito mais do que o que bebo

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Durante muitos anos não bebi café, foi uma das descobertas que fiz durante o período de confinamento devido à Covid 19. Agora gosto, bebo diariamente, mas sou muito fiel aos cafés de filtro. Compro em geral cafés de especialidade, pela sua elevada de qualidade, origem única (o que os faz ter personalidades próprias) e também devido aos aspetos relacionados com a cadeia de produção e abastecimento

Cada vez são mais as empresas que disponibilizam estes cafés e também os locais onde são servidos. Um dos meus locais de eleição em Lisboa é o Baobá Café na Rua de S. Paulo. Gosto do espaço e do ambiente, mas sobretudo do serviço e da simpatia. Em particular da disponibilidade para nos esclarecerem e satisfazerem os caprichos.

O Baobá Café é um espaço dos produtores de café brasileiros da Fazenda Baobá, em São Sebastião da Grama. Apenas os cafés deste produtor são servidos, chegam verdes e são torrados na loja semanalmente. Servem também alguns bolos e sanduíches, mas nunca provei. Já aos bombons não consigo resistir, porque são bonitos e porque as pequenas redomas de vidro em que são servidos os transformam num pequeno luxo.

Há tempos, éramos três pessoas, e pedimos o mesmo café preparado de três formas diferentes, com Chemex, Clever e Koar. Pareciam três cafés diferentes... Mas, mais do que termos tido a oportunidade de fazer esta comparação, o facto de nos ter chegado à mesa um tabuleiro com os três cafés e 9 chávenas, iguais três a três para não confundirmos, para os podermos provar e comparar, revela bem a atenção ao detalhe. Para além disso, explicaram-nos como tinham sido preparados, as características de cada processo de extração e como isso se reflete no resultado final.

 

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O Baobá passou a ser um local onde vou regularmente em Lisboa, porque gosto dos cafés e porque me permite descobrir cada vez mais e melhor o café. É um local onde um café é sempre muito mais do que o que bebo.

 

Baobá Café

Rua de S. Paulo 256, Lisboa

 

 

23
Ago22

Curadoria de experiências gastronómicas - desta vez de chá

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Enquanto escrevo, estou a beber um chá, Four Seasons Red Oolong (四季春紅烏龍), produzido no município de Zhushan no condado de Nantou em Taiwan. Este chá, orgânico e colhido manualmente, da colheita de Abril de 2021, é um chá oolong altamente oxidado (90%), tanto que não é claro classificá-lo como oolong, poderia ser um chá preto ligeiro, está na linha de separação destes dois tipos de chás. A justificação para o classificarem como oolong, é o facto de ter sido produzido a partir da variedade Four Seasons que é normalmente usada para este tipo de chás. Tem uma cor âmbar claro, e um sabor limpo, doce e frutado, em particular sentem-se frutos vermelhos.

Há muito tempo que queria uma subscrição de chás, que me desse a conhecer chás variados, de diferentes tipos e origens. Em tempos tinha tentado uma, mas não gostei, eram praticamente só chás aromatizados, não era o que queria, rapidamente desisti. Este ano descobri a Curious Tea, uma empresa que vende chá de alta qualidade e de várias proveniências. Têm subscrições mensais, em que podemos escolher receber dois chás, 50 g de cada, ou quatro chás, 10 g de cada. Esta última hipótese, chamada Discovery Tea Subscription, foi a que escolhi.

 

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Todos os meses recebo uma caixa com quatro pacotinhos de chá e uma ficha sobre cada um deles com a informação essencial, informação mais completa é colocada num blog. Podem fazer-se várias infusões das folhas de cada chá, dando de cada vez bebidas com características um pouco diferentes. Com os quatro pacotinhos de cada caixa podem fazer-se cerca de 50 chávenas de chá.

Já recebi chás da Índia, da China, da Tailândia, de Taiwan, do Quénia, da Coreia e do Japão, chás brancos, verdes, pretos, oolong e pu-erh. O custo mensal não paga o conhecimento que adquiro e o prazer que tenho a abrir a caixa e ver as embalagens cuidadas e muito bonitas, e sobretudo beber e comparar estes chás de grande qualidade. O chá que estou a beber veio numa destas caixas, é um chá muito diferente do que conhecia, muito peculiar. Toda a informação que me dão ainda o torna mais interessante.

 

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Na caixa de Fevereiro vinha um tipo de chá cuja existência desconhecia, Tokunoshima Sun Rougeum chá verde japonês pouco comum e que tem um alto teor de antocianinas (as moléculas que dão cor a muitos frutos e vegetais, e de que aqui já falei). Se se deitam uma gostas de sumo de limão no chá, ele muda de cor, fica cor de rosa.

As vivências que tenho de curadoria de experiências de gastronomia, esta e a dos chocolate artesanais, foram das coisas mais interessantes que descobri nos últimos anos. Permitiram-me conhecer e aprender coisas que de outra forma seria impensável.

Haver pessoas que pesquisam, selecionam, compram e nos disponibilizam os produtos de modo a podermos comparar, aprender sobre eles e a apreciá-los é fantástico. Às vezes nem é fácil acompanhar, pois exige algum trabalho da nossa parte, nem todos os meses consigo provar os quatro chás ou os quatro chocolates. 

Esta forma de receber os produtos é bem diferente de sermos nós a pesquisar e a comprar. Neste caso somos guiados na descoberta, são especialistas, com conhecimentos aprofundados, que selecionam o que nos dão a provar e a conhecer, que definem o percurso que nos levam a percorrer. Vamos sempre mais longe, somos sempre surpreendidos.

Estou fã desta curadoria de experiências gastronómicas, já nem sei viver sem isto. É um luxo!

 

 

1ª e 2ª fotos DAQUI

3ª foto DAQUI

 

 

26
Jul22

Em Londres com os Chocolates Vinte Vinte

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Há umas semanas fui ao Gourmet do El Corte Ingles, passei na zona dos chocolates e vi uma marca que não conhecia, Vinte Vinte, não fui ver o que eram, nem pensei muito mais nisso. Uns dias depois, no UK, recebi um email dos Cocoa Runners, com quem tenho uma subscrição para me enviarem mensalmente chocolates artesanais Bean to Bar, ou por vezes até Tree to Bar. Nesse email anunciavam um evento que ia decorrer umas semanas depois, a apresentação dos chocolates portugueses Vinte Vinte que iam começar a comercializar. Tinha mesmo que ir ver o que eram estes chocolates...

 

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Passados uns dias lá estava. E que bom ter ido!

Já tinha ouvido falar do WOW (World of Wine), um museu que não é só sobre vinho, já tinha ouvido falar do Museu do Chocolate (The Chocolate Story) que percebi ser uma parte do WOW, até já tinha pensado visitar quando fosse ao Porto. Mas não sabia que o The Chocolate Story, para além de contextualizar a história do chocolate e de oferecer atividades demonstrando como as favas de cacau são transformadas em barras de chocolate, também tinha produção artesanal de chocolate e uma marca própria, a Vinte Vinte. Nome que  é uma referência ao cacaueiro (Theobroma cacao) que cresce numa área geográfica entre as latitudes 20 ° N e 20 ° S do Equador, e ainda à excelência que ambicionam ter 20/20. 

Pertencendo ao grupo Taylor Fladgate, nada mais natural do que explorar as melhores combinações entre os chocolates Vinte Vinte e o vinho do Porto. Foi isso que também tivemos oportunidade de fazer. Não só pudemos provar chocolates das várias gamas produzidas (Classic, Intensity e Grand Cru), particularmente das duas últimas, com cacau de diferentes origens e percentagens, e completamente Bean to Bar, como também experienciámos várias combinações com vinhos do Porto.

A primeira proposta foi interessante, provar o Chocolate Branco, o mais doce em prova, e o Chocolate 100% Peru, o menos doce, com o mesmo Porto Branco, o Taylor's Chip Dry.  A perceção do vinho era completamente diferente, no primeiro caso, o doce do Chocolate Branco de certa forma adoçava o vinho, no segundo caso, com o Chocolate 100%, de cacau de uma variedade rara - Marañon - e sem nenhum açúcar adicionado, o vinho passava a ser sentido como levemente adocicado e a contribuir com uma certa doçura para o chocolate.

Seguiu-se o Chocolate 85% Madagáscar, chocolate frutado e com notas cítricas, que foi servido com um Ruby, o Fonseca Terra Prima Orgânico, e a acidez do chocolate contrabalançava a doçura do vinho. O Chocolate 75% Nicarágua, um chocolate com notas de frutos tropicais, café e avelã, foi emparelhado com um Taylor's LBV de 2017.

O vinho seguinte, Fonseca 20 Anos, um Tawny, foi provado com três chocolates diferentes que, entre outras, tinham notas de frutos secos e mel. Com o Chocolate 65% da República Dominicana, senti um equilíbrio muito grande, uma excelente combinação. Já com o chocolate do Uganda a 55%, achei menos equilibrado, devido à doçura do chocolate.  Contudo, com o Chocolate de Leite 45% da Venezuela, a componente láctea tornava a combinação muito interessante.

Para o fim ficou o chocolate topo de gama da Vinte Vinte, um chocolate com cacau de uma única colheita, da mesma quinta e da mesma variedade (muito rara) - Porcelana Blanca Rioja. Da gama Grand Cru, o México Soconusco, Finca la Rioja  - 70 %, tem um perfil aromático complexo, com notas de maçã, passas e frutos secos, e um leve tabaco. Foi o que suscitou maior desafio para combinar com um vinho. A escolha recaiu sobre o Taylor's Vintage Vargellas 2012.

Fechámos com chave de ouro uma sessão de provas muito interessante e participada, e muito bem conduzida pelo Pedro Martins Araújo que, depois de um percurso como Chef, se dedicou ao chocolate e aprofundou os seus conhecimentos viajando por países produtores. Sendo o responsável pelo The Chocolate Story e a Vinte Vinte, conhece todas as quintas onde é produzido o cacau que usam. De facto, como nos disse, para um bom chocolate há três aspetos fundamentais, a genética, o processo de fermentação e a torra. Os dois primeiros estão nas mãos dos produtores, sendo assim essencial conhecê-los para os avaliar com tanto detalhe quanto possível. Apenas o último, a torra, é realizado na fábrica.

 

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À saída ofereceram a cada participante uma caixa com 4 pequenas tabletes e 4 amostras de vinho do Porto, e ainda duas tabletes das que provámos a 100% e a 65%.

Uma tarde excelente! Uma sessão que me fez ter uma vontade ainda maior de visitar o WOW e em particular o The Chocolate Story.

 

 

Imagens 2 e 3  DAQUI

 

 

 

17
Ago21

Uma sobremesa do Estoril Mandarim que me levou muitas semanas a "digerir" - Parte 2

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Nunca imaginei a quantidade de horas e trabalho que seriam necessárias a "digerir" o Pastel de Nata Chinês do Estoril Mandarim... Mas também não imaginava como essa "digestão" seria interessante e me permitiria aprender muitas novas coisas. Estando a questão das influências no desenvolvimento dos Daan Tat (os ditos pastéis) tão ultrapassada quanto possível, pois não é bem clara para ninguém, passei à questão seguinte - como se faria a massa folhada dos pastéis?

 

Vi muitas receitas dos Daan Tat, e muitas fotos deles. Nalgumas o folhado da massa era bem evidente, mas diferente da dos Pastéis de Nata, noutras não se notava tanto. Vi também que basicamente a receita da massa podia ser dividida em dois grupos, aquele em que se usava uma técnica com as dobras características da massa folhada, ou uma outra em que isso não acontecia, e se misturavam os ingredientes todos da massa no início. Foi a primeira que me interessou mais, pois foi a que me pareceu dar resultados mais parecidos com o que eu tinha comido e me pareceu mais interessante.

 

A técnica usada para preparar a esta massa está bem ilustrada nesta receita das Egg Tarts do site Taste Asian Food, mas o processo basicamente surge em muitas outras receitas destes pastéis. Ou até apenas em receitas de massa folhada chinesa, ou de outros produtos, como uns folhados de carne de porco assada.

 

A principal diferença relativamente à massa folhada tradicional, é que enquanto nesta se faz uma massa e se introduz nela um bloco de manteiga/margarina para separar as camadas, na técnica usada na massa folhada chinesa são usados dois tipos de massas, uma a que chamam massa de água (feita com farinha, ovo, água e por vezes um pouco de gordura), e uma outra que se chama massa de gordura (com farinha e gordura, originalmente banha, mas pode ser manteiga ou outra gordura sólida). Estende-se, então, a massa de água e no interior coloca-se a massa de gordura, que vai separar as camadas. As características das duas massas folhadas são completamente diferentes. Muito interessante! A grande diversidade de técnicas nas várias culturas gastronómicas fascina-me.

 

A resposta, ou pelo menos hipótese de resposta, à questão relativa ao uso de leite nestes pastéis, numa região do mundo em que a grande generalidade da população é intolerante à lactose, surgiu também ao ler as receitas. Verifiquei que de facto é usado leite no recheio dos pastéis, mas em todas as receitas o leite usado era leite evaporado. Questiono-me qual será a razão, terá a ver com a disponibilidade, já que o leite é pouco consumido? Ou será pelo sabor, pois é necessariamente diferente? Para ter menos lactose não é, pois esta mantém-se.

 

O leite evaporado é leite não adoçado (ao contrário do condensado, a que é adicionado muito açúcar), mas a que cerca de 60% da água foi removida. Fica assim mais espesso e é possível, de certa forma, reconstituir o leite juntando partes iguais de leite evaporado e água. Curiosamente, em todas as receitas o açúcar (muito pouco, pois os chineses não consomem coisas muito doces) é diluído em água, e é a esta calda que se junta o leite evaporado e depois se mistura aos ovos. A quantidade de água varia, mas em geral é de duas a três vezes a quantidade de leite evaporado. Ou seja, o leite é muito diluído com água e, portanto, cada pastel tem pouco leite.

 

Dado que uma intolerância ao leite, não é uma alergia à proteína do leite, pois se fosse a situação e as consequências eram bem mais graves, neste caso a diminuição da quantidade de leite pode reduzir as consequências. De facto, no caso de intolerância (e pelo que li os graus de intolerância podem variar), quanto menos lactose se ingerir, menor o risco de desencadear sintomas. E as receitas mostram que a quantidade de leite em cada pastel é relativamente reduzida.

 

Uma longa "digestão" mas que me deu tanto ou mais prazer do que comer o Pastel de Nata Chinês no final de um almoço de Dim Sum, tal como se tornou habitual no século passado.

 

 

Foto DAQUI 

 

 

16
Ago21

Uma sobremesa do Estoril Mandarim que me levou muitas semanas a "digerir" - Parte 1

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Nem tínhamos a certeza de querer sobremesa. A decisão foi tomada de forma absolutamente casual, sem nenhumas expetativas particulares. Na hora de escolher terem-nos dito que uma das opções eram os Pastéis de Nata Chineses talvez tenha ajudado na decisão. Gerou alguma curiosidade. Nem imaginava quanto tempo iam ficar às voltas na minha cabeça... mas nunca mais saíram de lá. Talvez a partir de hoje possa considerar a sua "digestão" completa.

 

Já tinha visto esta sobremesa muitas vezes. Lembro-me muito bem delas nos carrinhos que andavam pela sala do New World em Chinatown em Londres, onde comecei a ir há cerca de 30 anos e que entretanto fechou. Mas nunca foram opção. Felizmente, há umas semanas, na esplanada do Estoril Mandarim, foram.

 

A primeira surpresa foi estarem mornos, não sei porquê mas não o esperava. A segunda foi a massa muito folhada, e muito delicada,  que quase se desfazia. Muito diferente de uma massa folhada normal, e que nunca tinha visto. Uma das questões que me ficou na cabeça foi: "como se faz uma massa assim?". Mas, além desta, outras questões surgiram. Uma relacionada com a origem daqueles pastéis, e se havia alguma relação com os nossos Pastéis de Nata. Uma outra sobre o leite no recheio, uma vez que este ingrediente não é comum em sobremesas asiáticas, pois há uma percentagem muito grande de pessoas intolerantes à lactose, nalguns coisas que li referem que mais de 90%.

 

A primeira questão que tentei esclarecer foi a relacionada com a origem destes doces, conhecidos como Dan Tat , que penso que significa tarte de ovo (egg tart) . As várias fontes que consultei, estando o que vi bem resumido aqui, eram unânimes quanto à data e local de origem - a cidade de Guangzhou (Cantão), durante os anos 1920, em resultado da grande competição entre grandes armazéns ( department stores) e que levava a que os chefs a trabalhar nestas lojas criassem novos produtos para atrair a clientela. Esta proposta fez sucesso e acabou por ser uma sobremesa muito comum em restaurantes que serviam Dim Sum, um estilo de comida /refeição também cantonesa, mas que para além disso se disseminou por outras cidades e regiões da Ásia, como por exemplo Singapura, e em particular Hong Kong, onde foram introduzidos depois da II Guerra nas casas de chá que começaram a proliferar. Por isso são também conhecidos como  Hong Kong Egg Tarts

 

Quanto às influências são-lhes sempre apontadas duas, as Custard Tarts inglesas e os Pastéis de Nata portugueses, mas sem grandes explicações mais. Vi apenas uma referência ao facto do recheio possivelmente ser influenciado pela Custard inglesa e a massa pelos nossos Pastéis de Nata, uma vez que é mais folhada e a massa das Custard Tarts é massa quebrada. Os navios portugueses chegaram pela primeira vez à província de Cantão em 1513, e Hong Kong tornou-se uma colónia britânica no início dos anos 1840. Nestes séculos de interação houve muita oportunidade de lá chegarem as Custard Tarts e os Pastéis de Nata. Tanto mais que Macau foi uma colónia portuguesa desde meados do século XVI até final do século XX.

 

As Custard Tarts já eram comuns na Idade Média e foram servidas no banquete de coroação do rei Henry IV em 1399. Segundo Virgílio Gomes, a primeira receita relacionada com os Pastéis de Nata surge no Caderno de Receitas da Infanta Dona Maria (1538-1577), com a designação de Pastéis de Leite. A massa exterior não é a mesma, contudo. Essa já é uma evolução mais recente e , ainda segundo Virgílio Gomes, a primeira receita com a designação de Pastéis de Nata surge nos registos das últimas freiras do Mosteiro de Odivelas, que encerrou em 1886  (outro texto de Virgílio Gomes com mais informação AQUI) . Curiosamente, nas informações que encontrei, a origem tanto das Custard Tarts como dos Pastéis de Nata, acaba por ser associada a França, onde a pastelaria estaria mais desenvolvida.

 

Ainda mais curioso foi, no final de todo este processo ter lido a introdução de um artigo recente de Francisco Louçã no Expresso, O Pastel de Nata é 100% português ? , relacionado com alguns atletas que nos representaram nos jogos Olímpicos, em que diz:

É uma pergunta difícil. Tem que ser portuguesíssimo, pensamos nós. É ali de Belém, ou de outros lugares pátrios, uma iguaria que ninguém consegue imitar na perfeição, um segredo só nosso. Já foi uma marca de identidade de campanha promocional, há filas de estrangeiros e de indígenas à porta das pastelarias mais afamadas, tem de ser nosso, orgulhosamente nosso.

O problema é a massa folhada. É um imbróglio histórico: terá sido inventada por um francês em Roma, ou por um pasteleiro, também francês, em Nancy. No século XVI, terá sido, só que uma carta de um bispo umas centenas de anos antes menciona a iguaria. Resumindo, a massa folhada não é portuguesa e nem se sabe quando e onde foi inventada. E pode um bom pastel de nata, 100% português, ser feito sem massa folhada estrangeira? É que não pode. Aqui chegado, será de perguntar se a questão da percentagem de portuguesismo tem a menor relevância. Pois, não tem mesmo qualquer sentido. O pastel de nata é uma combinação única feita com os materiais disponíveis, acrescentando um engenho especial, produzido como uma combinação especial. A inovação está aqui: no caráter único da mistura de ingredientes e no modo de confeção.

 

Concordo que, de facto, pastel de nata é uma combinação única feita com os materiais disponíveis, acrescentando um engenho especial, produzido como uma combinação especial. A inovação está aqui: no caráter único da mistura de ingredientes e no modo de confeção. E é tudo isto que faz também com que as Custard Tarts e as Dan Tat sejam combinações únicas e com personalidades bem próprias.

 

Uff!!! Uma das minhas questões ficou "arrumada" ao fim de muitas semanas, mas ainda me faltavam duas outras questões... que também me mereceram muitas horas de pesquisas e reflexões. Mas ficam para amanhã...

 

 

08
Nov20

As Argolas da Maria José

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Não sei há quantos anos não comia as Argolas da Maria José, há muitas décadas certamente. Nem me lembro bem da Maria José que as fazia, e por isso elas surgem com o nome dela no livro de receitas da minha Mãe, mas lembro-me de as fazer em criança. Mal chegava à bancada da cozinha, mas recordo-me perfeitamente das bolinhas de massa, de meter o dedo no meio e rodar para fazer a argola. Lembro-me de as ver fritar. Lembro-me sobretudo de as comer. Para além dos Borrachões, os biscoitos que me lembro de comer em criança eram as Argolas da Maria José e os Lagartos. Esta semana foi altura de revisitar as Argolas da Maria José. A foto, tirada apenas para mandar às minhas irmãs para ver se sabiam o que era, não está grande coisa, mas a vida real é assim, nem tudo tem que ser perfeito. Souberam-me tão bem quanto me lembrava, e isso foi o mais importante.

 

Olhei para a receita... o líquido adicionado era (de novo) aguardente! As Argolas com menos quantidade dela do que os Borrachões. Antes assim! Concluí que me alimentavam a biscoitos de aguardente. Imaginei-me a questionar os meus Pais sobre isso. Acho que me diriam qualquer coisa como "O ponto de ebulição do álcool é 78ºC, já não está lá nada". Alguma coisa estaria, mas não chegava para intoxicar ninguém.

 

Porquê aguardente? Foi o que me perguntei a seguir. Lembrei-me do famoso polme dos Fish & Chips do Heston Blumenthal. No livro A Cozinha é um Laboratório, que a Margarida Guerreiro e eu escrevemos, tínhamos falado deste polme. Já não me lembrava o que tínhamos dito e, como tem acontecido muitas vezes nos últimos 11 anos, voltei ao livro. Penso sempre que foi bom tê-lo escrito, foi bom ter registado tanta coisa que de tempo a tempo preciso rever e ali está. Dávamos duas razões para o uso da vodka no polme - evitar a formação do glúten e o evaporar rapidamente, portanto a crosta ficar mais leve e seca.

 

Quando como Borrachões, para além do sabor, gosto da textura - seca, crocante, sem ser muito densa. As Argolas têm uma textura parecida. Um pouco "folhada" (não é de todo um folhado, não sei, talvez aquilo  que os ingleses chamam flaky e que não sei traduzir). Pensei que a causa de textura era do álcool, da aguardente e do vinho branco. Evitava a formação de glúten, evaporava mais facilmente e, além de sair e deixar o biscoito seco, também separava camadas de massa ficando o biscoito menos denso, com aquela textura em que sempre reparava.

 

Pesquisei no Google Académico para tentar encontrar algum artigo que falasse nisso. Não encontrei. Fui buscar uns livros e encontrei apenas uma breve referência ao álcool dificultar a formação do glúten. Pouca coisa.

 

Googlei um pouco...

"Beyond flavor, alcohol can also affect the texture of your baked goods. Adding a splash of vodka into pie dough can help create a super flaky dough—unlike water, vodka doesn't develop as much gluten in the pie dough. The same goes with tart and shortbread dough—for flaky results, add in a splash of vodka." Dizia  o artigo  "The Boozy Ingredient Your Baked Goods Are Missing" no site Epicurious (os americanos são brilhantes a falar de cozinha, melhores que ninguém, muito aprendi com eles ao longo da vida).

 

Um outro artigo, no blog da Scientifc American, "How Alcohol Maskes a Flakier Pie Crust: The "Proof" is in the Pie" dizia:

"The final ingredient to consider is the liquid. This could be water, though some use milk or even vinegar. And, of course, there’s always vodka as an option. Say whaaaaat?

....

The vodka rationale isn’t to intoxicate your pie--it has to do with gluten. Liquids are essential to pie crusts because they bind the dough together; however, they can present challenges. When liquids are added to flour, two wheat flour proteins--gliadin and glutenin--form gluten, which can toughen the dough. So how do you bind fat and flour together but avoid gluten formation? The trick appears to be using a hard liquor such as vodka--since 80 proof vodka is only 60% water, it combines the dough but doesn’t contribute to gluten formation."

 

Todos concordavam na influência do álcool na textura, por evitar a formação de glúten. Eu acho que o baixo ponto de ebulição, que o faz evaporar rapidamente, também é importante. Interessante seria saber quem se lembrou primeiro de usar a aguardente nos Borrachões e nas Argolas, ambos biscoitos da Beira Baixa. As mulheres que os criaram não podiam googlar e descobrir tudo aquilo que disse... Porquê a aguardente? É sempre interessante ver que esta evolução empírica tem frequentemente uma explicação mais aprofundada, e que acaba por ocorrer da mesma forma em lugares distantes.

 

Também me intrigou a forma de cozer as Argolas, fritando-as. Acredito que fosse mais acessível do que acender um forno que exigiria mais lenha, um método mais caro e trabalhoso, um tipo de equipamento que nem todos teriam.

 

Todo este processo e pensamentos entretiveram-me algumas horas numa tarde de sábado. No final apeteceu-me uma Argola da Maria José. Nada feito... já tinham acabado há uns dias, mas estas questões que andavam na minha cabeça prolongaram o prazer de comer as Argolas.. 

 

 

31
Out20

Shaken, not stirred

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"Shaken, not stirred", foi o que imediatamente me veio à cabeça hoje quando vi a notícia da morte do Sean Connery. Nem sabia muito do cocktail a que se referia, apenas que o preferia batido. Lembrei-me de um artigo do Telegraph, Food science and food myths: James Bond may have been onto something,  que deixo todos os anos aos meus alunos, normalmente no final de uma semana de aulas, para lerem durante o fim de semana. Será que algum o leu? Tenho algumas dúvidas... Eu também não o lia há muito.

 

Lembrava-me da discussão sobre a preferência de James Bond - shaken, not stirred, aliás relacionado com o título do artigo, de mais nada, mas apenas os 3 últimos dos 18 parágrafos do artigo são sobre este assunto. Gostei de voltar a ler. Depois fui procurar saber um pouco mais sobre o cocktail, descobri que é pela primeira vez pedido por James Bond no livro de 1953 de Ian Fleming, Casino Royale.  Onde é assim descrito:

"Three measures of Gordon's, one of vodka, half a measure of Kina Lillet. Shake it very well until it's ice-cold, then add a large thin slice of lemon-peel. Got it?" ("​Casino Royale," Chapter 7.)

Embora a frase "shaken, not stirred" só apareça no livro Diamonds are Forever de 1956. No cinema é pedido pela primeira vez por James Bond, representado por Sean Connery, em Goldfinger em 1964. Foi interessante descobrir uma recriação do cocktail, com alguma informação sobre ele, num artigo recente - James Bond's Famous Vesper Martini - no site The Spruce Eats.

 

Mas porquê batido no shaker, quando  geralmente  os cocktails só com bebidas transparentes são apenas mexidos? Reservando-se o shaker para quando os cocktails têm outros ingredientes. Têm surgido várias explicações, mas a apresentada no artigo do Telegraph como a razão para o James Bond, um homem de bom gosto, preferir a sua bebida batida está relacionada com as características da vodka na época em que Ian Fleming escreveu o livro. Estava-se no pós Segunda Guerra Mundial, os cereais eram caros, e a batata era muito usada na produção de vodka.  Estas vodkas de batata são mais oleosas, e se o cocktail for batido, o óleo fica melhor emulsionado e a bebia mais suave.

 

Aparentemente isto foi confirmado em prova cega na redação do Telegraph, e a preferência do James Bond validada. Ficou confirmado que o James Bond era mesmo um homem de bom gosto e a culpa para o aparente erro na preparação era mesmo da batata.

 

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