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Assins & Assados

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06
Fev23

Lampreia - o luxo e o conforto

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Não me lembro de nenhum ano em que não tivesse comido, pelo menos uma vez, lampreia. Um ritual que partilho com algumas das minhas irmãs e sobrinhos. Por vezes em restaurantes de Lisboa, mas o ideal  mesmo é ir até ao Restaurante A Lena, no Apeadeiro da Barragem de Belver. Aconteceu este fim de semana.

Cresci a poucos quilómetros dali. A lampreia é para mim uma comida conforto, mas um conforto que é maior quando é cozinhada de forma idêntica à da que comia em casa dos meus Pais. Em restaurantes de Lisboa não é o mesmo... Além disso, este ano com a falta de lampreia, tornou-se um produto de luxo. Vi menus com doses a mais de 70 euros, com apenas 4 postas. Ali o preço é pouco mais de metade disso, pela refeição inteira - entrada, prato, sobremesa, bebidas e café. Para ajudar, o número de postas é cerca do dobro, comemos todos à vontade, e ainda trouxemos o que sobrou.

A lampreia vem de França, como aliás me disseram acontecer há já vários anos. Este ano nalguns rios em França a pesca está proibida, por questões de preservação da espécie. Tem que vir de outros rios, e vem menos.

Tinha ido ao restaurante A Lena há uns anos com alguns dos meus alunos, tinha escrito aqui sobre isso (parte I e parte II). Podia ter usado as mesmas fotos daquela refeição de há 6 anos, pois tudo estava igual. Gosto de aventura, mas também desta estabilidade e consistência.

Para terminar, uma excelente fatia de Tigelada, um doce que faz parte das minhas memórias gastronómicas.

 

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À saída estava a mostrar à minha sobrinha a mesa onde os meus Pais ficavam sempre, a dona apareceu e disse-lhe. Ela comentou: "Ah! Bem me parecia que as vossas caras me eram familiares. Sendo assim, vocês sabem mesmo o que é lampreia". 

Este ano não vou comer mais vezes, mas o ritual está cumprido e o gosto satisfeito. Estava tão boa! Para o ano lá estaremos de novo.

 

 

19
Dez22

Trindade - muito há a refletir sobre a nova reencarnação desta antiga cervejaria

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Há umas semanas li que, depois de muito tempo fechada para obras de remodelação, a Trindade tinha aberto. Há uns dias estava na Baixa à hora de almoço e decidi ir à Trindade.

Houve um período da minha vida em que ali ia muito frequentemente, fosse para almoçar ou jantar, ou apenas para umas cervejas com umas batatas fritas, uns croquetes ou uns rissóis. Deixei de ir regularmente, mas durante muitos anos continuei a ir ocasionalmente. Há uns anos que não ia e resolvi voltar àquele lindíssimo espaço.

Comecei por notar que o espaço da sala estava organizado de uma forma diferente, mas os azulejos ainda mais bonitos.

 

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Antes de me sentar, até mesmo antes de entrar, sabia o que ia comer. Tinha decidido que ia reviver velhos tempos e hábitos. Nem precisaria do menu, mas dei uma vista de olhos, aos pratos e às bebidas. Nesta altura aconteceu o 1º contratempo, tinha planeado beber uma imperial mista, como habitualmente ali fazia. Não vi na lista cerveja Sagres preta. Olhei para as torneiras das cervejas a copo. Não, não estava lá... Se calhar devia ter pedido uma imperial "normal", mas gosto de cervejas IPA, pedi a Profana. Achei graça ao nome, senti-me profana, por ali estar a beber uma cerveja de garrafa, coisa que nunca tinha feito. A garrafa era bonita, a cerveja agradável. Mas não era o mesmo...

Para entrada pedi um croquete. Ele chegou e quando o ia comer apeteceu-me, como habitualmente fazia, pôr-lhe umas gotas de mostarda. Olhei para a mesa, não havia mostarda - 2º contratempo. Não havia no momento nenhum empregado de mesa por ali e fui comendo o croquete. Cremoso e saboroso, soube-me bem. Mas sem mostarda, não era o mesmo... 

 

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Com o bife chegaram mais contratempos. Costumava temperar as batatas com sal, pimenta e um fio de mostarda. Nada sobre a mesa... não exagero se disser que me senti um pouco peixe fora de água, desconfortável, faltavam ali coisas habituais e importantes. Desta vez pedi sal e mostarda. Veio um moinho de sal de madeira. Tudo bem, não era o que esperava, mas era coerente com as pretensões do novo ambiente. Quando a mostarda chegou... 3º contratempo (dois já relacionados com a mostarda). Em vez de vir num frasco que permitisse dosear, veio uma tacinha com mostarda. Nada para a tirar, tirei com a minha faca. Não gostei, não permitia pôr um fio de mostarda sobre as batatas, de forma a que cada uma não ficasse a saber muito a mostarda, mas quase todas tivessem uma nota de mostarda. Achei um desperdício (coisa que nunca caiu bem, mas nos tempos atuais ainda menos). Não usei nem um quarto da mostarda que trouxeram e o destino do resto foi o lixo. Imagino que os frascos de plástico amarelo não fossem coerentes com a estética atual, mas arranjem outros que desempenhem a função... 

 

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Antes de começar a comer o bife, e depois de temperar as batatas, peguei numas com a mão para acompanhar uns golos da cerveja. Quando chegaram à boca, nem foi surpresa, pois já o tinha sentido, as batatas estavam murchas - 4º contratempo. Comiam-se, mas eram apenas umas batatas fritas sofríveis.

Iria o bife salvar a situação? Era bom era, mas não salvou. Há tanto tempo que não ia ali, apetecia-me um bife bom, pedi um bife de lombo mal passado. Estava mais para o médio, a tender para bem passado. Quase parecia que tinha sido batido, embora admita que não foi, mas algumas partes tinham um corte horizontal a meio que interferia com a textura. As memórias que temos podem ficar desfocadas com o tempo... mas o molho pareceu-me diferente, e para pior. Era levemente adocicado, felizmente a mostarda e o sal ajudaram a salvar um pouco a situação. Não tinha pão, não molhei pão, e a parte final do bife foi comida já sem molho, pois já tinha acabado. Era preciso pouparem no molho? Ou seja, o bife foi o 5º contratempo, e o molho o 6º contratempo.

Perguntaram se queria sobremesa, claro que tinha pensado num daqueles pudins flan individuais, tão característicos das cervejarias, mas não havia - 7º contratempo. Havia várias sobremesas, mais coerentes com as pretensões do espaço, mas não com as minhas.

Pedi a conta - 8º contratempo. Um bife com batatas fritas sofrível, uma cerveja e um croquete custaram 35,70 euros (já com a gorjeta sugerida na conta - esta não chegou a ser um contratempo, mas hei-de voltar a este assunto noutra altura). Achei caro, muito caro para aquilo que me ofereceram! Sei que o Alexandre Silva é consultor, não sei qual foi o seu papel, talvez na introdução de novos pratos e sobremesas, que não provei.

A Trindade perdeu aquele ambiente boémio, está agora mais séria e com outras pretensões. Talvez agrade a turistas e a quem nunca a conheceu antes, mas acredito que quem a conheceu saia com as expetativas defraudadas, como me aconteceu. Aliás, depois de sair fui ler alguns comentários de clientes e vários se queixam de alguns dos pontos que referi.

Como dizia há tempos, as expetativas por vezes são lixadas. Querer reviver o passado, também pode dar mau resultado, os tempos são outros, e nós somos outros. Mas, apesar disso, acho que muito há para refletir sobre esta nova vida da Trindade. Não voltarei nos tempos mais próximos... E tenho pena!

 

Cervejaria da Trindade  - R. Nova da Trindade 20 C, Lisboa

 

12
Nov22

Surpresas, coincidências e uma entrevista para o Mesa Marcada

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Eu gosto do número 5, e por vezes faço as coisas de modo que a haja um 5 qualquer envolvido. Não foi o caso desta vez. Foi mesmo uma coincidência de que só tomei consciência depois dos factos consumados. Mas 5 anos, 5 meses e quase 5 dias (foram 3 dias, quase, quase 5...) depois de me terem entrevistado para o Menu de Interrogação (2017) do Mesa Marcada, o Duarte Calvão e o Miguel Pires convidaram-me para uma segunda entrevista para o Menu de Interrogação.

O convite foi uma (boa) surpresa, numa semana de muitas surpresas. Deixou-me muito contente. Diverti-me muito a responder,n uma longa noitada, até de madrugada, mas valeu a pena. Obrigada Miguel e Duarte!

Quase por coincidência (esta forcei-a ligeiramente), exatamente 5 anos e 5 meses depois de ter escrito um post a falar da primeira entrevista, estou a escrever um sobre a segunda!

Tanta coincidência só pode dar sorte!

 

 

19
Ago22

Fogo - o final foi inesperado...

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Vou começar pelo fim... por uma situação que nem sequer é habitual ser referida. Acabámos de jantar, pagámos e antes de sair fui à casa de banho. Entro e oiço um poema a ser declamado. Não me lembro que parte ouvi quando entrei, mas reconheci-o de imediato e passados breves instantes ouvi o início:

 

“Vem por aqui” — dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui”!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…

 

Fiquei por ali a ouvir o Cântico Negro do José Régio dito pelo João Villaret. Fui dizendo os versos ao mesmo tempo. Tive uma professora de português fantástica entre os 10 e o 15 anos. Só bem mais tarde percebi muita coisa e a sorte de a ter tido com professora. Foi ela que nos introduziu alguns escritores e poemas, entre eles este. Sei lá... devia ter uns 14 anos, uma idade de uma certa rebeldia, decorei-o, muitas vezes o repetia. Fiquei ali encostada a sorrir, a lembrar-me disso, e de que a rebeldia afinal não era assim tanta...  

O restaurante era o Fogo, do Alexandre Silva. Posteriormente também pensei na razão da escolha do Cântico Negro para a casa de banho. De certa forma esta moda de cozinhar com fogo pode ser associada a alguma rebeldia, tem algo de aventura, heróico, teatral...  quem sabe esteja aí alguma relação.  

Falando da moda de cozinhar com fogo, tenho que reconhecer que não me suscita grande simpatia. Às imagens de regresso às origens, natural e romantismo associadas, e que intuitivamente passam, sobreponho imagens de poluição ambiental, pouca eficiência energética, elevado risco e falta de sustentabilidade. Tudo isto é muito complexo e, curiosamente, tenho procurado informação, e ainda não encontrei nada de sério. Gostava mesmo de um dia ver uma análise aprofundada dos efeitos em cozinhas de restaurantes de fine dining, com os equipamentos de cozinha e extração que usam, que penso que devem ter alguma sofisticação e otimização para reduzir riscos, melhorar o processo de combustão e a transferência de calor. Estudos há muitos, mas sobre cozinha familiar de quem não tem acesso a outras formas mais saudáveis de preparar os alimentos. Tanto se falou de cozinha molecular e dos efeitos nefastos, e tenho sempre a sensação de que é uma brincadeira ao lado do que é cozinhar com fogo de lenha. 

Apesar de tudo isto, na vida não podemos fazer só o que é isento de riscos, e consigo compreender que possa ser um estímulo interessante para alguns chefes e que, com um grande investimento, se consigam minimizar os efeitos negativos. Cozinhar com fogo permite introduzir sabores e aromas próprios agradáveis. Além disso, conseguir uma certa delicadeza de sabores em várias preparações é um desafio que compreendo que cause entusiasmo. 

Há muito tempo que queria ir ao Fogo, pois tinha curiosidade de ver o que era possível fazer. Não tinha dúvidas de que gostaria. E gostei do que comi...

 

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Já foi há muitas semanas, mas lembro-me muitas vezes deste arroz de forno. Verdadeira comida conforto! Digamos que o arroz e a o Cântico Negro na casa de banho foi o que mais emoções me despertaram em todo um jantar que me soube muito bem e em boa companhia.

Foi bom depois procurar a gravação do João Villaret a recitar o Cântico Negro, mas estas buscas são como as cerejas... vem sempre mais alguma coisa. Encontrei também a gravação da Procissão de António Lopes Ribeiro recitada pelo João Villaret. Não sei porque razão, associo-a ao verão, janelas abertas e muita luz, na casa dos meus Pais, que tinham o LP.

 

 

17
Ago22

The sexiest cabbage I have ever eaten

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Há pratos inesquecíveis. Por vezes não é muito clara a razão. Uma refeição pode ser excelente, por vezes até há pratos que se destacam, mas passado um tempo fica uma imagem geral, difusa, de que nada se recorda em particular. Outras vezes podem até nem ser tão bons, mas por qualquer razão nunca mais se esquecem.

Há muito que queria ir ao Eat Vietnam em Stirchely, em Birmingham, as referências eram ótimas. Num almoço de fim de semana escolhemos vários pratos do menu, e uma das pessoas na mesa sugeriu pedir a Hispi cabbage with black pepper sauce, que estava nos pratos do dia num quadro negro. Não fiquei muito entusiasmada. Talvez isso até tenha contribuído para tornar o prato inesquecível e o único de que me lembro da refeição. Quando provei foi como se tivesse levado um murro. O sabor forte, mas sobretudo a  sua complexidade, elegância, sofisticação... deixaram-me deslumbrada, mais que isso, emocionada. Foi mesmo uma surpresa!

 

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Hispi Cabbage with Black Pepper Sauce

 

Há mais quem achasse o prato bom. Acho mesmo que " The sexiest cabbage I have ever eaten" é uma descrição que lhe assenta como uma luva. Tanto que a "roubei" para o título do post.

 

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E não estava tão bonita como a minha. Então se estivesse...

 

 

07
Ago22

De novo as memórias... as minhas... mas há mais mundo para além delas!

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Quando li o título da notícia no Guardian, sabia exatamente do que estavam a falar... Conheço bem o Whitelock's, o pub mais antigo de Leeds, com mais de 300 anos, descrito pelo poeta John Betjeman como very heart of Leeds . No final do século 19, quando foi adquirido pela família Whitelock foi relançado como um sofisticado bar de almoços, pensa-se que foi o primeiro edifício em Leeds a ter iluminação elétrica. Foi decorado com vitrais, espelhos e um balcão de bar com azulejos de cerâmica e tampo de cobre. Foi esta decoração, muito bem conservada, que sempre conheci. Fiquei contente. Mas perguntei-me "Então e a comida?".

O trabalho que fiz para o doutoramento foi em colaboração com um grupo de investigação da Universidade de Leeds. A primeira vez que lá fui, há mais de 30 anos, convidaram-me para jantar no Whitelock's. Penso que foi nesse jantar que comi pela primeira vez um Yorkshire Pudding, um prato que adoptei. Depois voltei lá algumas vezes, sobretudo quando estive a viver um ano em Leeds durante o pós-doutoramento. 

Há poucos meses fui passar um fim de semana a Leeds com as minhas filhas. Fomos ver a nossa casa e tirámos fotos à porta, fomos ver a escola delas e tirámos muitas fotos, e quis voltar ao Whitelock's. Marquei mesa para um dos jantares. Entrar no Whitelock's foi um choque... Depois de dois anos de muitos períodos de isolamento e muito cuidado, passar no pequeno beco que dá acesso à entrada foi um desafio. Parecia o metro em hora de ponta, ninguém tinha máscara e todos tinham um copo na mão. Lá dentro, até chegar à zona das mesas, a situação não era diferente. Só tive mesmo coragem pois tinha acabado de recupera do Covid e achei que teria alguma imunidade. 

Gostei de voltar, o interior muito bem mantido é lindíssimo. A atmosfera característica de um pub, o ruído (imenso) e  o (grande) movimento, apesar do que disse, souberam bem. Um regresso à normalidade. 

 

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Antes de decidirmos ir, comentei com a minha filha que gostava muito de ir, mas se calhar não havia opções veganas. Uma consulta ao menu no site, mostrou havia várias e isso não seria problema. Mas, e mais uma vez um choque, não havia era Yorkshire Pudding, o que eu tencionava comer. Apenas era servido com o Sunday Roast. Comi um prato vegano, que estava bastante bom. Reconheço até que era coerente com o espaço. Mas senti a falta do Yorkshire Pudding que habitualmente comia.

 

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Spiced Cauliflower Steak
red pepper sauce, tenderstem broccoli, Hasselback new potatoes

 

Por isso, quando li o artigo perguntei-me "Então e a comida, será que não devia ser também protegida?". Mais um vez consultei o menu no site, e fiquei na dúvida se tinha razão. Se calhar não tinha. Há que evoluir, passaram 140 anos desde que o Whitelock's funciona como restaurante, tudo mudou... o menu necessariamente também. O de há 30 anos, devia ser já bem diferente do inicial. Conseguiram adaptar a oferta a um mundo que exige opções mais sustentáveis e uma adaptação a um novo público. O menu é interessante,  e consegue conjugar novos pratos, uma nova forma de comer, com pratos mais tradicionais. Tudo o que comemos era bem coerente com o espaço, bom e bem confecionado. O Yorkshire Pudding continua a ser servido no Sunday Roast. Podemos pedir mais do que isso? Acho que não.  A questão que me pus nem sequer é coerente com o que penso em geral.

De novo as memórias... as minhas... mas há mais mundo para além delas!

 

 

03
Ago22

As coisas que nos ficam na memória...

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Há tempos fui jantar ao Zindiya Streatery & Bar, um restaurante de street food indiana em Birmingham. O ambiente é descontraído e simpático, da comida podia dizer o mesmo. Já lá fui várias vezes, e o que comi não diferiu muito das vezes anteriores. 

Neste jantar mais recente, sentámo-nos, peguei na lista, olhei para a sala e vi passar um saco de plástico com uma palhinha e um líquido dentro. Veio-me imediatamente à memória o percurso para o cais em Singapura onde fui apanhar um barco para um passeio turístico. Lembro-me muito pouco do passeio, diria mesmo que nada me ficou na memória, aquilo de que claramente me lembro eram as dezenas de pessoas que iam apanhar outros barcos e que levavam na mão um saco de plástico com um líquido dentro e uma palhinha.

No Zindiya ao ver passar aquilo, disse de imediato "tenho mesmo que pedir esta bebida", também pensei "não é a forma mais sustentável de servir uma bebida". Mas o primeiro pensamento teve mais força. Chamei a empregada e pedi que me indicasse no menu o que era. Não era certamente o que vi nos sacos em Singapura, mas não importava, já era mais do que uma bebida, pois tinha associada uma camada de memórias e emoções.

Passado uns minutos tinha o meu cocktail de lima e limão, e uma série de pequenos pratos para o acompanhar, porque naquele dia a estrela foi mesmo a bebida, no saco de plástico.

 

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As coisas que nos ficam na memória... E como mais de uma década depois nos levam a tomar decisões....

 

 

03
Dez20

Os Queijos de Figo do Bertílio, ou como uma coincidência nos altera os planos

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Natal sem Queijos de Figo não é bem Natal. A minha Mãe fazia-os todos os anos, umas semanas antes do Natal. Queijos de Figo e Peixes de Amêndoa. Muitos, para distribuir por todos. Às vezes faço. Tinha estado a pensar em fazer Queijos de Figo para o Natal, para mim e para os meus irmãos. Fui buscar o livro de receitas da minha Mãe. Curiosamente anotava  frequentemente a quantidade que fazia, e digo curiosamente porque era sempre a mesma - 2 quilos de figos que davam entre 12 e 14 queijinhos. As notas começam em 1988 e terminam em 2000. Fiz a lista de compras para os fazer.

 

Estava sol... fui andar um pouco. Entrei na Mercearia Criativa para encomendar pão da Gleba (às vezes é preciso variar), vi os Queijos de Figo, reparei que eram feitos pelo Bertílio Gomes. Veio um comigo. Como eu gosto deles! Curiosamente os doces tradicionais portugueses não levam chocolate, mas este leva. Interessante!

 

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O do Bertílio leva aguardente de medronho, os da minha Mãe não levavam aguardente, mas levavam muita raspa de limão. Mas são igualmente bons. Comi-o mais depressa do que devia... mas também rasguei a lista de compras que tinha feito. Mudança de planos! Substituí-a por uma que dizia apenas 7 Queijos de Figo do Bertílio.

 

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PS

Em resposta a um pedido, a receita da minha Mãe:

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Deixo-os sobre papel vegetal a secar um pouco, vou virando.

 

 

08
Nov20

As Argolas da Maria José

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Não sei há quantos anos não comia as Argolas da Maria José, há muitas décadas certamente. Nem me lembro bem da Maria José que as fazia, e por isso elas surgem com o nome dela no livro de receitas da minha Mãe, mas lembro-me de as fazer em criança. Mal chegava à bancada da cozinha, mas recordo-me perfeitamente das bolinhas de massa, de meter o dedo no meio e rodar para fazer a argola. Lembro-me de as ver fritar. Lembro-me sobretudo de as comer. Para além dos Borrachões, os biscoitos que me lembro de comer em criança eram as Argolas da Maria José e os Lagartos. Esta semana foi altura de revisitar as Argolas da Maria José. A foto, tirada apenas para mandar às minhas irmãs para ver se sabiam o que era, não está grande coisa, mas a vida real é assim, nem tudo tem que ser perfeito. Souberam-me tão bem quanto me lembrava, e isso foi o mais importante.

 

Olhei para a receita... o líquido adicionado era (de novo) aguardente! As Argolas com menos quantidade dela do que os Borrachões. Antes assim! Concluí que me alimentavam a biscoitos de aguardente. Imaginei-me a questionar os meus Pais sobre isso. Acho que me diriam qualquer coisa como "O ponto de ebulição do álcool é 78ºC, já não está lá nada". Alguma coisa estaria, mas não chegava para intoxicar ninguém.

 

Porquê aguardente? Foi o que me perguntei a seguir. Lembrei-me do famoso polme dos Fish & Chips do Heston Blumenthal. No livro A Cozinha é um Laboratório, que a Margarida Guerreiro e eu escrevemos, tínhamos falado deste polme. Já não me lembrava o que tínhamos dito e, como tem acontecido muitas vezes nos últimos 11 anos, voltei ao livro. Penso sempre que foi bom tê-lo escrito, foi bom ter registado tanta coisa que de tempo a tempo preciso rever e ali está. Dávamos duas razões para o uso da vodka no polme - evitar a formação do glúten e o evaporar rapidamente, portanto a crosta ficar mais leve e seca.

 

Quando como Borrachões, para além do sabor, gosto da textura - seca, crocante, sem ser muito densa. As Argolas têm uma textura parecida. Um pouco "folhada" (não é de todo um folhado, não sei, talvez aquilo  que os ingleses chamam flaky e que não sei traduzir). Pensei que a causa de textura era do álcool, da aguardente e do vinho branco. Evitava a formação de glúten, evaporava mais facilmente e, além de sair e deixar o biscoito seco, também separava camadas de massa ficando o biscoito menos denso, com aquela textura em que sempre reparava.

 

Pesquisei no Google Académico para tentar encontrar algum artigo que falasse nisso. Não encontrei. Fui buscar uns livros e encontrei apenas uma breve referência ao álcool dificultar a formação do glúten. Pouca coisa.

 

Googlei um pouco...

"Beyond flavor, alcohol can also affect the texture of your baked goods. Adding a splash of vodka into pie dough can help create a super flaky dough—unlike water, vodka doesn't develop as much gluten in the pie dough. The same goes with tart and shortbread dough—for flaky results, add in a splash of vodka." Dizia  o artigo  "The Boozy Ingredient Your Baked Goods Are Missing" no site Epicurious (os americanos são brilhantes a falar de cozinha, melhores que ninguém, muito aprendi com eles ao longo da vida).

 

Um outro artigo, no blog da Scientifc American, "How Alcohol Maskes a Flakier Pie Crust: The "Proof" is in the Pie" dizia:

"The final ingredient to consider is the liquid. This could be water, though some use milk or even vinegar. And, of course, there’s always vodka as an option. Say whaaaaat?

....

The vodka rationale isn’t to intoxicate your pie--it has to do with gluten. Liquids are essential to pie crusts because they bind the dough together; however, they can present challenges. When liquids are added to flour, two wheat flour proteins--gliadin and glutenin--form gluten, which can toughen the dough. So how do you bind fat and flour together but avoid gluten formation? The trick appears to be using a hard liquor such as vodka--since 80 proof vodka is only 60% water, it combines the dough but doesn’t contribute to gluten formation."

 

Todos concordavam na influência do álcool na textura, por evitar a formação de glúten. Eu acho que o baixo ponto de ebulição, que o faz evaporar rapidamente, também é importante. Interessante seria saber quem se lembrou primeiro de usar a aguardente nos Borrachões e nas Argolas, ambos biscoitos da Beira Baixa. As mulheres que os criaram não podiam googlar e descobrir tudo aquilo que disse... Porquê a aguardente? É sempre interessante ver que esta evolução empírica tem frequentemente uma explicação mais aprofundada, e que acaba por ocorrer da mesma forma em lugares distantes.

 

Também me intrigou a forma de cozer as Argolas, fritando-as. Acredito que fosse mais acessível do que acender um forno que exigiria mais lenha, um método mais caro e trabalhoso, um tipo de equipamento que nem todos teriam.

 

Todo este processo e pensamentos entretiveram-me algumas horas numa tarde de sábado. No final apeteceu-me uma Argola da Maria José. Nada feito... já tinham acabado há uns dias, mas estas questões que andavam na minha cabeça prolongaram o prazer de comer as Argolas.. 

 

 

18
Out20

Borrachões e outras memórias...

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Há dias o meu amigo Virgílio Gomes escreveu uma crónica que começava assim:

Hoje estou a escrever sobre memórias da minha meninice, um doce a que nos era limitado o consumo, pelos nossos Pais, pela concentração alcoólica que parecia conter.

O nome dos bolo, que comia em Espanha, é Borrachos. O Virgílio fala sobre eles, sobre a relação estreita com Espanha, pois é de Bragança e era mais acessível para compras e outras atividades. No final fala de bolos portugueses também com bebidas alcoólicas como ingrediente, nomeadamente dos Borrachões.

 

Lembrei-me da minha meninice também, da relação estreita que tínhamos com Espanha, todas as memórias de compras de brinquedos, roupa e comidas menos habituais que tenho são de Espanha. No meu caso de Badajoz. E são as mesmas memórias de muitos outros

 

Há dois anos fui com as minhas três irmãs passar um fim de semana a Badajoz. Fomos à procura das nossas memórias de infância. O edifício do Simago, onde tantas compras fazíamos, ainda lá está, com um supermercado com outro nome. Bem recordámos os perritos calientes, impossíveis de esquecer, que se vendiam no vão da escada para o parque de estacionamento. Tomámos o pequeno almoço no local onde antes os nossos Pais no levavam a almoçar uns platos combinados. Fomos procurar a mais maravilhosa loja de brinquedos onde alguma vez entrámos Las Tres Campanas. Lá estava o edifício, fechado, iam construir ali um hotel.

 

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A minha maior desilusão foi não ter visto nenhum dos enormes cones de latas de melocotón (que para mim era um fruto mágico, lisinho, brilhante, de um amarelo atraente e delicioso, e que só bem crescida associei a pêssego). Aliás, as lojas onde ia com o meu Pai, comprar enchidos, patés, melocotóns e caramelos, e que me deixavam maravilhada, já não existem. O mundo mudou e Badajoz também. Foi um excelente fim de semana, cheio de recordações e também de descobertas.

 

Ui! Perdi-me! O objetivo não era falar destas memórias, mas dos biscoitos mais maravilhosos que alguma vez comi. Biscoitos esses que o Virgílio Gomes refere na sua crónica, os Borrachões da Beira Baixa. Eram os biscoitos mais comuns durante a minha infância. Tão maravilhosos são que se continuam a fazer em minha casa e na de todos os meus irmãos. Não sei se hoje seria bem visto dar às crianças biscoitos feitos com vinho e aguardente... mas o mundo era outro.

 

Das férias de verão tinha trazido uma garrafinha com aguardente artesanal para fazer borrachões, ler a crónica do Virgílio foi o empurrão que precisava. Segui a receita da minha Mãe:

 

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Metade vinho branco, metade aguardente, uma colher de sopa bem cheia de banha e o resto azeite. Ficaram maravilhosos. São mesmo os melhores biscoitos que alguma vez comi!

 

Mas para além dos sabor, encanta-me a simplicidade dos ingredientes, o engenho, a arte e a criatividade para fazer uns biscoitos deliciosos com o pouco que havia.

 

 

Foto dos Borrachões DAQUI  (é que dos meus já não sobrava nenhum)

 

 

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