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Assins & Assados

Assins & Assados

04
Mai25

A Cavala Algarvia e as associações improváveis que despoletou.

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O objetivo era um jantar rápido e leve antes de ir para casa. Estava na altura pelo Saldanha e decidi ir ao Lota Sea & Fire.  Para entrada pedi uma Cavala Algarvia. Chegou-me um prato com cavala, a polpa interior de tomate e uma água de tomate, para além de outros temperos. Enquanto comia, com muito agrado, fui fazendo várias associações à primeira vista improváveis... associei-o à minha Mãe (que nunca fez um prato assim, nem me lembro de ter cozinhado cavala) e ao Heston Blumenthal, onde comi cavala num prato diferente, de facto um dos pratos que considero dos melhores que comi na minha vida - o Sardine on Toast Sorbet. Mas a cavala também não era particularmente importante nestas associações. De facto, o importante era a polpa e a água do tomate.

Lembro-me de fazer Doce de Tomate com a minha Mãe, e é bom lembrá-lo hoje que é Dia da Mãe. Na época do tomate havia sempre um dia em que se faziam alguns tacho de doce de tomate para o ano inteiro. A receita era esta:

 

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Cortávamos uma cruz superficial nos tomates, colocávamo-los um ou dois minutos em água muito quente, e a pele saía facilmente. Depois, abríamos os tomates ao meio e tirávamos toda a polpa interior. Era esta a parte que mais me intrigava. Havia um passador de rede por cima de uma tigela e a minha Mãe dizia-me para tirar a polpa interior e todas as sementes com uma colher de chá e deitar tudo para o passador. A ideia era que as sementes ficassem no passador e o resto da polpa passasse para a tigela. Quando lhe perguntei um dia porque fazia aquilo ela respondeu-me que aquele líquido era a parte mais saborosa do tomate. Nunca mais me esqueci desta resposta.

Uns anos depois soube que o Heston Blumenthal tinha comentado com uns químicos da Universidade de Reading no Reino Unido que a polpa interior do tomate, à volta das sementes, era muito mais saborosa que a parte restante mais firme e carnuda, que se sentia mais o gosto umami.  Ficaram curiosos, foram pesquisar a literatura, e verificaram que não havia registos de comparações do sabor de componentes de diferentes partes do fruto do tomate, nem da análises do teor de compostos umami entre diferentes variedades de tomates. Ficaram interessados em investigar este assunto e publicaram posteriormente os resultados.

 

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Usaram um painel de provadores para provar a polpa interior do tomate e a parte mais firme. No entanto, para não haver influências da textura ou do aspeto, separaram a duas parte do tomate, meteram num liquidificador e a seguir filtraram para obter uma água de tomate em ambos os casos. Foi essa água que foi provada e as conclusões foram as da tabela seguinte:

 

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Ou seja, a polpa interior e a parte mais firme do tomate foram percebidos de forma diferente. A polpa foi considerada  mais salgada, com maior teor de umami, e mais ácida. A percepção residual destes gostos também seguia a mesma linha.  As sensações na boca  (um formigueiro, adstringência e viscosidade) também foram sempre superiores para a polpa.

Análises do teor de sal e do pH mostraram valores idênticos (de facto menos sal na polpa interior), que não explicam a diferença sentida pelos provadores. Onde havia grandes diferenças era no teor de compostos responsáveis pelo gosto umami. Os valores para o ácido glutâmico (Glu) e para o monofosfato de adenosina (AMP) eram diferentes nas 14 variedades de tomate analisadas. Contudo, eram sempre muito mais elevados na polpa interior do que na parte firme do tomate. Para o Glu a média era  de 4,56 para a polpa interior e 1,26 g/kg para o resto do tomate. Para  a AMP os valores na polpa variaram entre 213 e 561 mg/kg e na parte mais firme entre 24 e 196 mg/kg. Estes valores explicam a diferente perceção do gosto umami,  e podem também ser uma explicação para a diferença da perceção do teor de sal e acidez, pois os compostos responsáveis pelo gosto umami intensificam a perceção dos sabores.

Quando li tudo isto há uns anos lembrei-me do doce de tomate da minha Mãe e do que me disse, estes estudos demonstravam que ela tinha razão. Também a partir daí sugeri frequentemente aos meus alunos que pusessem um tomate cereja na boca e o apertassem com a língua de forma a sair a polpa interior e sentissem o sabor. E que depois disso mastigassem o resto do tomate e vissem a diferença.

Voltando ao prato que despoletou todas estas memórias e reflexões, e me levou a fazer estas associação à primeira vista improváveis, mas que tinham a sua razão de ser. Os peixes de mar e os mariscos têm normalmente um teor de umami elevado, tal tem como função não os deixar desidratar na água salgada, como já referi num outro post. A cavala é um peixe com um elevado teor de umami, este complementado pelo umami do tomate, tornava o  prato delicioso e irresistível. 

 

 

24
Mar25

Marmalade, um doce (para adultos) de que tem que se aprender a gostar

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Quando me perguntam se com a torrada que pedi para o pequeno almoço quero "jam or marmalade?", em geral peço marmalade, porque em Roma se deve ser romano... Mas há dias em que para amargo já basta o de alguns acontecimentos que não podemos controlar, nesses dias preciso de algo mais suave, e fico-me por um doce de morango ou framboesa.

A palavra marmalade, lembra a nossa marmelada, e o que tenho lido é mais ou menos unânime atribuindo a esta a origem da palavra inglesa. No entanto, são bem diferentes, a marmelada é um delicioso doce sólido de marmelo, a marmalade é um doce de laranja amarga, tipo geleia espessa mas, em geral, com pedaços de casca da laranja em suspensão. Será também delicioso para alguns mas, talvez por não ser da minha criação, ainda estou a aprender a achá-lo delicioso. Para já é uma experiência interessante, é exótico, e algo que me apetece entender e descobrir melhor.

Mas voltando ao nome, dizem que há registos, do final do século XV, da chegada a Inglaterra e à Escócia de caixas de marmelada portuguesa. Diz-se até que nessa época seriam atribuídas ao marmelo propriedades curativas e seria até consumida como medicamento. Começou então a ser feito no século XVII um produto semelhante, mas usando laranjas, com uma consistência sólida, idêntica à da marmelada. Penso que não exclusivamente com laranjas amargas. Diz-se que no final do século XVIII James Keiller comprou um carregamento de laranjas de um navio português que se tinha abrigado de um temporal no porto de Dundee, na Escócia, e que as estava a vender a um preço baixo. Aparentemente, só depois de as ter comprado se apercebeu de que eram laranjas demasiado amargas e não dava para serem comidas como fruta. Deu-as à sua mãe que as transformou em doce, e possivelmente foi ela que inovou e introduziu a marmalade com uma consistência diferente, que permitia ser barrada.

Por essa época o que se comia ao pequeno almoço estava a sofrer alterações, em vez de ser uma caneca de cerveja com uma torrada a boiar, com a introdução recente do chá em Inglaterra e na Escócia, cada vez era mais popular um chá com uma torrada e, entre outras coisas, a marmalade começou a ser usada para barrar as torradas e a ser cada vez mais consumida. Assim, a família Keiller acabou por ser a primeira a produzir industrialmente e comercializar a marmalade, na sua fábrica de Dundee. Negócio este que cresceu e se estendeu para outras zonas, sendo na segunda metade do século XIX os maiores produtores mundiais de marmalade. Estima-se que em meados do século XIX produzissem cerca 1,5 milhões de potes de marmalade Keiller por ano. As empresas Keiller fecharam por volta de 1992, havendo outros produtores, e sendo um doce popular noutros países para além do Reino Unido, como é o caso, por exemplo, dos EUA, Escandinávia, Alemanha, Japão e Índia.

Não me parece que seja um doce muito apreciado por crianças, é amargo demais e, de facto, dizem que o seu consumo está em declínio, sobretudo entre os jovens. Quando questionado (por Felicity Cloake para o seu livro Red Sauce Brown Sauce - A British Breakfast Odyssey), sobre este assunto, Martin Grant da empresa Mackays, uma das principais empresas produtoras de marmalade, diz que não é objetivo deles atrair consumidores entre a população jovem, que quando o gosto se começa a desenvolver e a amadurecer e se começa a apreciar vinho, café e queijo, então aí está-se preparado para apreciar marmalade e se tornam fãs para toda a vida. Também desenvolvem as suas próprias preferências, pois o pedaços de casca de laranja em suspensão na geleia, podem ir desde pequenas partículas da casca moída até fatias mais ou menos espessas. Há umas marmalades mais ou menos inofensivas, outras têm uma personalidade mais forte, direi até mais amarga. 

O principais ingredientes são os mesmos para todas as marmalades, laranjas (em geral) amargas, açúcar, água, e um pouco de sumo de limão para que o pH seja adequado para que a pectina das laranjas (e da que é por vezes adicionada) desempenhe o seu papel na perfeição, para além da técnica e sensibilidade de quem a produz. Contudo, a algumas são adicionados outros produtos que as aromatizam, whisky, rum, champanhe ou especiarias são comuns. Estas versões são sobretudo preferidas por pessoas para quem o consumo de marmalade não é um hábito bem estabelecido. O meu caso...

Há algum tempo que compro a marmalade que consumo de uma produção artesanal da zona onde vivo, a Springfield Kitchen. Uma pequena empresa de um casal, que em 2004 começou a cultivar o seu novo jardim, e dado que a produção de vegetais e frutas começou a ser elevada, ofereciam a vizinhos e amigos, mas em 2013 decidiram fazer doces e chutneys para uma feira de Natal e a partir daí aumentou a produção. Vendem sobretudo em feiras e em pequenas lojas independentes.

Gosto muito da Seville Orange Marmalade with Cardamom & Saffron, uma ideia dada por uma companheira de viagem, originária de Mumbai (Bombaim), numa visita que fizeram a Goa em 2023. Tem um sabor exótico, complexo e sofisticado.

 

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Como por vezes não está disponível, alterno-a com a Spiced Orange Marmalade with Rum, que já tinha acabado qundo me lembrei de a fotografar.

 

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Provo-as sempre com a torrada com manteiga e marmalade, ou apenas com marmalade, para confirmar o que Heston Blumenthal refere na introdução da receita Sardines on Toast Sorbet (um prato excelente e que me deixou memórias inesquecíveis) do seu livro The Fat Duck Cookbook, em que diz que a marmalade de laranja que contém pedaços de fruta se for servida em tostas sem manteiga tem um sabor mais forte do que se as tostas forem barradas antes com manteiga. Confirmo sempre, e noto-o não só relativamente ao sabor a laranja, mas também ao das especiarias.

Estas diferenças culturais relacionadas com o consumo de alimentos são verdadeiramente interessantes. E embora haja evoluções, estou firmemente convencida que a tradição ainda tem um peso muito grande no consumo em cada região. No entanto, as alterações climáticas também vão ter um papel importante na mudança dos hábitos de consumo. Por exemplo, no caso das laranjas amargas, as laranjas de Sevilha de agricultura biológica poderão  caminhar para a extinção no próximo século se o número de explorações agrícolas continuar a desaparecer, as alterações climáticas afectarem as culturas, e as doenças dizimarem as árvores.

 

1ª Foto DAQUI

 

 

19
Mar25

Portugália - 100 anos!

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A primeira vez que fui à Portugália, na Almirante Reis, foi com o meu Pai, tinha 10 anos. Cada vez que lá entro olho para a mesa em que nos sentámos dessa vez. Há quase nove anos relembrei essa visita AQUI. Hoje é dia do Pai, e ao lembrar o meu (que acho que teve muita influência no meu gosto pela comida e por comer), lembrei-me que recentemente fui almoçar à Portugália e, ao olhar para a dita mesa, recordei essa primeira visita. Tudo isto me deu vontade de escrever hoje sobre a Portugália.

A Portugália é um restaurante que para mim representa mais do que apenas a comida que serve, é um restaurante que ocasionalmente frequento há muitas décadas, e a que tenho alguma ligação emocional. Recentemente, para comemorar o centenário desta cervejaria, fizeram obras e introduziram algumas mudanças. Sei que as alterações foram muito pensadas, que consultaram pessoas da área da gastronomia e clientes. Que tiveram em conta opiniões sobre o que foi feito na Trindade que, do meu ponto de vista,  teve alguns aspetos menos conseguidos.

Estava curiosa sobre o que aconteceria com a Portugália. Estive lá em Agosto e voltei este mês. As primeiras impressões foram boas. Penso que, sem ser descaracterizado, o espaço ficou mais bonito, mais atual e com mais dignidade.

 

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Das duas vezes muitas mesas ocupadas, o mesmo tipo de clientes, quase todos portugueses, que frequentavam habitualmente este espaço. Caras que vão mudando, mas um serviço de sala que continua eficiente e simpático. Nesta nova fase, continuo a sentir-me na Portugália, "em casa", e (ainda mais) confortável.

O menu mantém todos os pratos que os habituais clientes da Portugália procuram, só notei a falta dos rissóis de camarão. Continua a haver a introdução de novas opções (como acontece há já alguns anos) muito baseadas em pratos tradicionais, e que diversificam opções e atraem outros públicos. Houve mesmo a introdução de uma opção vegetariana (Cogumelos à Brás) e outra vegana (Burguer). O preços são razoáveis.

 

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As minhas escolhas recaem em geral no que está mais relacionado com as minhas memórias das muitas refeições que aqui tive, os croquetes com mostarda, um prato de camarões ou percebes, os bifes, e quase sempre o Pudim Flan a que chamam "o clássico" e que ocupa o primeiro lugar na lista de sobremesas.

A Portugália envelheceu bem. 100 anos é uma bela idade! Que viva por muito mais anos e nos proporcione este ambiente, e esta oferta tão portuguesa (ou lisboeta) e com que tanto nos identificamos.

 

 

 

06
Mar25

Sardinhas em Sheffield

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Há exatamente 34 anos estava a fazer um pós-doutoramento na Universidade de Leeds, estava integrada no projeto "Design Racional de Moléculas Envolvidas em Situações de Reconhecimento Molecular", que estava a arrancar. O projeto era liderado por uma investigadora que vivia em Sheffield. No ano em que trabalhei no projeto, e nos anos que se seguiram, em que mantive alguma colaboração, Sheffield era uma cidade frequentemente referida. Nunca tinha ido a Sheffield, durante o ano de pós-doutoramento não fui lá (apesar da viagem de comboio durar menos de 1 hora), posteriormente também nunca visitei a cidade. Não tinha nenhuma imagem de Sheffield. Recentemente, andava a precisar de uns dias de descanso, olhei para o mapa do UK para escolher onde poderia ir passar um fim de semana, e Sheffield foi a escolha. Uma cidade não demasiado longe, não demasiado grande ou pequena, hotéis com preços razoáveis, e alguns restaurantes que poderiam ser interessantes.

 

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Depois de um passeio por Kelham Island, outrora a zona de produção da indústria de cutelaria e aço de Sheffield, a que agora zonas residenciais, pubs, cafés, lojas e restaurantes independentes deram uma nova vida, fui almoçar a um dos restaurantes que me tinha parecido interessante, o Native, um restaurante cuja oferta se centra em peixe e mariscos. Tinha lido algumas coisas sobre o restaurante e achei interessante que fosse de uma empresa que comercializa peixe, a J H Mann Fishmongers, uma empresa fundada em 1921 e que durante quase 100 anos pertenceu à mesma família. Christian Szurko, chefe de cozinha e dono atual da empresa, trabalhava em Sheffiled e, em 2005, decidiu ficar com a empresa e empenhar-se em continuar a manter o nível de qualidade e excelência dos produtos. Depois da pandemia decidiram que a empresa, para além do comércio de peixe,  tivesse também um restaurante, e em 2021 o Native abriu tendo com linha de orientação o seguinte: “Os produtos do mar devem ser frescos, honestos e tão dinâmicos quanto as águas de onde vêm”.

 

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Uma decoração atraente, com um cozinha aberta, vestígios de um ambiente  industrial com paredes de tijolos à vista, aço exposto e tetos altos, complementados com um conjunto de quadro com cores fortes e móveis de madeira. Há um menu regular com propostas mais ou menos clássicas, e outro com uma oferta que vai variando e é apresentado num quadro, com pratos mais criativos. 

 

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No quadro apareciam umas Grilled Sardines - Puntarelle, Anchovy, Chilli and Preserved Lemons, associo sempre sardinhas a uma certa nostalgia, e outras formas de as apresentar deixam-me sempre curiosa. Não fazia a menor ideia do que era puntarelle, uma pesquisa rápida e fiquei a saber que era um tipo de chicória. Mais, que era usada numa salada tradicional italiana com anchova, alho, azeite, vinagre e sal, suspeitei que de certa forma esta poderia ter inspirado o acompanhamento das sardinhas. Estava decidido! Apetecia-me o sabor a mar das ostras, e não resisti à focaccia com óleo de lagosta e óleo de algas.

 

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Produtos frescos e muito bem tratados. Interessante a foccacia com os dois óleos com aromas marinhos. Mas o melhor foram as sardinha. O conforto do seu sabor característico, um excelente ponto de cozedura que as deixava com uma textura muito agradável, o exotismo do tempero, e um acompanhamento fresco e saboroso, resultaram num excelente prato.

Apeteceu-me experimentar outra coisa e a escolha recaiu no Mussel Crumpet - Mussels, Garlic Butter, Monks Beard. 

 

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Um prato muito guloso, e um pouco mais pesado também, com o crumpet bem ensopado com a manteiga de alho. A monk's beard  (Salsola Soda) uma planta halófita, um pouco crocante e com um sabor herbáceo, semelhante a espinafre, e levemente salgado, contrastava com a riqueza do prato e complementava-o muito bem.

Seguiu-se uma tarde no centro da cidade.

 

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No fim do dia já tinha uma imagem, e até sabores, de Sheffield.

 

 

05
Jan25

O viver entre duas vidas e a sensação de "urgência" de comer certas coisas

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Carapaus Frito com Açorda de Ovas - Taberna os Papagaios

 

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Há dias perguntaram-me qual era a casa em que me sentia mais "em casa", se a de Portugal ou a de Inglaterra, onde tenho passado muito tempo nos últimos anos. Sinto-me igualmente "em casa" nas duas, são as duas bem diferentes, mas as duas o meu espaço. Diferentes são também a minha vida em cada uma delas e, eventualmente, até a minha personalidade. Contudo, não me sinto dividida entre estas duas vidas. Quando estou numa, não penso na outra, estou por inteiro em cada uma delas. 

No que diz respeito à minha relação com o que como, acontece o mesmo. Tenho a sorte de ter uma enorme curiosidade gastronómica e quase uma obsessão por preencher a minha "base de dados" gastronómica. É um privilégio esta oportunidade de descobrir e experimentar novas coisas, e até de me apropriar de algumas delas. Claro que não como como os ingleses, que cozinho comida portuguesa, mas muitas da coisas que como aqui também se tornaram comida conforto.

O viver entre estas duas vidas, também me tem permitido interiorizar melhor as diferenças entre as duas culturas gastronómicas e aquilo de que, apesar de não me aperceber no quotidiano, tenho mais saudades.

Ao chegar a Lisboa, há mesmo uma sensação de "urgência" de comer determinadas coisas. Coisas e sabores a que não tenho acesso em Inglaterra. Muito frequentemente tiro fotos do que como, funciona um pouco como diário. Hoje olhei para fotos de refeições em restaurantes em Lisboa nos últimos dois anos, e tentei identificar coisas únicas, coisas que preciso de comer, que são parte integrante da minha vida e personalidade gastronómica em Lisboa. 

O peixe e o marisco... Diz-se que não há peixe como o nosso, e de facto é bem diferente. Não só o peixe, como as  variadíssimas formas de o tratar...

 

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Berbigão na Brasa - Fogo

 

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Filhós de Berbigão à Bulhão Pato - ZunZum

 

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Percebes e Camarão - Cervejaria Portugália

(gosto muito das nossas cervejarias, e a Portugália da Almirante Reis é a minha preferida) 

 

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Caranguejo de Casca Mole com Salada Verde - Pap'Açorda

 

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Tortilha Aberta de Camarão e Cebola - Canalha

 

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Carapaus Alimados - Pap'Açorda

 

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Pica-Pau do Mar - Mãe - Cozinha com Amor

 

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Polvo à Lagareiro - O Frade

 

Os nossos salgadinhos, seja como petisco ou como prato. Por vezes ainda no aeroporto compro um croquete e um rissol para comer assim que chegar a casa.

 

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Empadas de Perdiz - Pica Pau

 

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Croquetes com Arroz de Grelos - Cantinho do Avillez

 

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Rissóis com Xarém de Berbigão - Taberna os Papagaios

 

Incontornáveis são os nossos arrozes, mas sobre eles já escrevi. Ao ver as fotos, contudo, reparei numa outra coisa, a qualidade e diversidade de alguns couverts. É tão bom começar a refeição assim!

 

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Couvert - O Poke

 

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Couvert - Cantinho do Avillez

 

Estas coisas não há em Inglaterra. Há outras boas, mas estas não há mesmo! 

 

 

03
Set24

Doce de Morango com Chá Earl Grey - uma delícia!

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Gosto de fazer doces de fruta, tomate, figo e morango são os meus preferidos. Tomate é um doce conforto. Era, a par da marmelada, o que em criança via a minha Mãe fazer em grande quantidade, para o ano todo para uma família de oito pessoas. O de figo é uma hábito mais recente, porque é bom e porque nalguns anos a figueira dá muitos figos.

 

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Não tenho memória de ver a minha Mãe fazê-lo, ela cristalizava-os ou secava-os e comíamo-los durante o inverno. O de morango, o meu preferido, é outra história...

Em criança vivia numa pequena vila da Beira Baixa, os morangos que comia eram basicamente os que davam alguns morangueiros plantados no quintal. Tinham que ser divididos por oito bocas, eram cortados aos pedaços e misturados com (muito) açúcar, o suco do morango com o açúcar (por vezes diluído com um nadinha de água) formava um molho delicioso. Tenho mais memórias do molho dos morangos, do que propriamente dos morangos. Aqueles morangos eram um luxo! Não havia por ali onde comprar, comíamos apenas aqueles que cresciam ali ao lado de casa. Comer morangos era uma raridade! Doce de morango? Nem pensar, não chegavam para isso. 

Muitos anos mais tarde, quando comecei a fazer doces, já tinha acesso aos quilos de morango que quisesse. Mas  doce de morango ainda soava a luxo, e comecei a fazê-lo. Às vezes compro, mas gosto mais dos meus. Sobretudo desde que compreendi os processos moleculares que ocorrem quando se faz um doce de fruta, pois começaram a ficar bem melhores.

Comecei a variar também. Para além do doce de morango simples, faço doce de morango com baunilha e doce de morango e tomate. O ano passado experimentei uma nova variante - doce de morango e chá Earl Grey. Vi a receita no livro Red Sauce Brown Sauce - A British Breakfast Odyssey de Felicity Cloake e... não descansei enquanto não o fiz.

 

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Ficou tão bom! Repeti, mas decidi fazer de memória, e fiz asneira... Juntei o açúcar aos morangos e folhas de chá logo no início. O açúcar impediu as folhas de chá de hidratarem bem e ficaram mais duras. Era óbvio que isso ia acontecer... mas não pensei... Comi todo, mas não era a mesma coisa. Os morangos acabaram e tive que esperar (ansiosamente) quase um ano para o fazer de novo. Tenho comido de vez em quando. Com pão, bolachas, scones ou panquecas, com manteiga ou clotted cream

 

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Ainda tenho alguns frascos para os próximos meses. Depois... é esperar (ansiosamente) que haja morangos de novo... 

 

 

28
Mar24

Fecha-se uma porta e abre-se uma janela

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Os restaurantes passam por uma época complicada, são afetados em quase todos os países por custos mais altos, falta de pessoal... No entanto, tudo isso aqui no UK é ainda agravado pelo Brexit. A situação exige que se recorram a várias estratégias como, por exemplo, abrirem apenas para jantar (ou almoço), servirem menos carne ou terem menus mais simples. Mas muitos fecham, mesmo muitos! 

A cidade onde vivo não é propriamente um paraíso gastronómico, muito longe disso... Não é também uma cidade turística, ou uma cidade rica, o que agrava a dificuldade dos restaurantes independentes, e dificulta uma evolução.

Havia, no entanto, dois restaurantes que para mim eram oásis no meio da situação geral. Um deles era um café libanês, o Taz, que estava aberto até ao fim da tarde. O outro, um restaurante com uma cozinha atual, baseada na culinária inglesa, no centro da cidade, o Green Dragon.

O Taz era perto de minha casa, um porto seguro... Ia frequentemente para lá trabalhar, e comia o que fosse apropriado para a hora do dia, já que a oferta era variada. Ia lá almoçar muitas vezes, a sopa de lentilhas era excelente! Mas não era só a sopa, tudo era muito bom, a melhor comida do Médio Oriente que alguma vez comi. Bem confecionada, mais sofisticada do que é habitual, e bem apresentada. Para além de tudo isto, os preços eram muito razoáveis, o espaço bonito, e o ambiente muito agradável. Tinha sempre gente, clientes fiéis. Mas um dia fechou, e a minha vida ficou mais pobre.

 

Pratos do Taz

 

O Green Dragon, era num edifício medieval com estrutura de madeira, que tinha para sido transferido para aquele local (como muitos outros edifícios históricos da mesma rua), após a Segunda Guerra Mundial, em que esta cidade foi muito destruída. O espaço era bonito, mas sempre achei que faltava qualquer coisa de acolhedor naquele ambiente, a comida era muito boa.

 

Pratos do Green Dragon

 

A minha última refeição no Green Dragon

 

No verão passado jantei no Green Dragon, e pouco tempo depois soube que tinha fechado definitivamente. A minha vida ficou ainda mais pobre.

Mas diz-se que quando se fecha uma porta, se abre uma janela... Perto de minha casa havia uma loja que vendia cervejas, nunca me tinha apercebido, mas no Beer Gonzo, por detrás da loja, havia uma sala onde se podia beber cerveja. Na parede do fundo tem um conjunto de 18 torneiras, quase todas de cerveja, mas também uma ou duas de cidra e duas de vinho. No verão passado fecharam para obras. A sala por detrás da loja ficou melhor e mais visível, começaram a introduzir outros produtos, (bons) cafés, queijos, enchidos, tábuas de queijos e enchidos, e a venderem o melhor pão que aqui existe. E... cereja no topo do bolo... há dois meses começaram a ter pequenos pratos de quarta a sábado. A cozinheira... reconheci-a quando entrei, é a mesma do Green Dragon (pelo menos do meu último jantar) - Sarah Jenkins. A cozinha não pretende ser ao mesmo nível, as infra-estruturas não o permitem, e o objetivo não é o mesmo. Mas é muito boa, e a minha vida melhorou.

 

Pratos do Beer Gonzo

 

A situação atual obriga a procurar alternativas... janelas que se abrem, quando portas se fecham!

 

 

02
Mar24

Há dias com sorte! E o black pudding era muito bom.

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Está frio por aqui e uma chuvinha miúda constante... No últimos tempos tenho tido muito que ler (e não é lazer)... Acordei, apetecia-me um dia diferente, e pensei: "faça chuva ou sol, vou-me meter num autocarro e vou a Leamington Spa". A viagem demora cerca de 50 minutos. Se chovesse muito, iria a dois ou três sítios de que gosto, almoçava e regressava. Sempre tinha quase  duas horas de passeio de autocarro. Quando cheguei não chovia, aproveitei e fui logo à loja da Aubrey Allen.

 

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É sempre uma paragem obrigatória. Nem que seja apenas para "lavar os olhos" (como diz o meu amigo João). "Lavar os olhos" faz bem... e também comemos com eles. Mas, desta vez, até trouxe duas coisas. Pequenas, mas que me têm sabido muito bem, uma deliciosa manteiga e um black pudding.

 

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Nem queria acreditar quando olhei para a prateleira refrigerada e o vi - um Black Pudding da Fruit Pig Butchery em East Anglia. Tinha lido sobre ele há uns meses, no livro Red Sauce, Brown Sauce - A British Breakfast Odyssey da Felicity Cloake. Aparentemente é o único black pudding neste país que ainda é feito com sangue de porco fresco e não com sangue seco (que é mais fácil de adquirir). Isso estava bem indicado no rótulo:

 

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Sangue fresco de porcos locais (28%), Gordura de porcos Britânicos (24%), Aveia e Cevada Britânicas, Cebolas, Sal e Especiarias.

Não tenho grande conhecimento, nem muitos termos de comparação, para o black pudding, mas ela dizia que era diferente de todos os outros. Para o descrever usava adjetivos como " rich and creamy, luxurious, full and round in the mouth". Com isto esperava uma textura cremosa e um sabor forte, mas bem balanceado. 

No dia seguinte de manhã também chovia, e estava frio. Para o pequeno almoço, pus umas fatias de black pudding na air-fryer, torrei duas fatias do melhor pão que tenho aqui (da Lily & Fox Bakery - ou seja, de um casal do meu bairro que trabalhava em cinema e tv e resolveu mudar de vida e fazer pão, neste momento vendem em feiras e pop-ups, mas penso (e espero ansiosamente) que vão abrir uma padaria na esquina da minha rua). Com muita expetativa provei o black pudding. Uma base cremosa, mas os grão dos cereais conferiam uma descontinuidade de textura bem agradável. O sabor... muito rico e forte, mas não agressivo, aromático e picante. Delicioso! Um sabor muito elegante que se prolonga na boca por muito, muito tempo! Um luxo!

Apesar de bem diferentes, fez-me lembrar as morcelas frescas, acabadas de fazer, que ainda não tinham ido ao fumeiro,  que íamos comer grelhadas a casa da minha Avó nos dias de matança de porcos na fábrica, ou que o meu Pai trazia para casa. Lembro-me de as ver fazer, de as ver cozer, de antecipar o sabor delas, um aroma forte a cominhos. Também cremosas, também com sangue. Diferentes, mas igualmente deliciosas. Um luxo!

Um dia pedi ao meu Pai que escrevesse umas notas sobre a fábrica, sobre a forma como funcionava. Há uns anos digitalizei tudo. Fui procurar, e lá estava a descrição da forma como faziam as morcelas.

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Ainda bem que fui a Leamington Spa, apesar da chuva e do frio. Permitiu descobri coisas novas e reviver memórias antigas.

 

23
Jan24

Comida conforto onde menos a esperava... mais uma boa dose de umami!

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Há dias em que sinto uma necessidade tremenda de comer comida asiática - chinesa, vietnamita, japonesa... não importa. Nesses dias, costumo comentar comigo mesma que estou a precisar de uma boa dose de umami e, a não ser que algo muito forte o impeça, uma das refeições será num restaurante que me permita satisfazer este desejo.

A cidade onde vivo tem uma universidade que é frequentada por muitos estudantes asiáticos, muitas das residências para estudantes são no centro da cidade, e portanto também lá há muitos supermercados com produtos para manterem os seus hábitos alimentares, e muitos restaurantes relativamente económicos que frequentam.

Há dias estava a precisar da minha dose de umami e fui até ao centro. A escolha recaiu num pequeno restaurante cantonês onde nunca tinha ido. Nas outras mesas muitos jovens. Olhei para o menu, várias possibilidades interessantes, até que li :  

Steamed Pork with Zhacai on Rice   榨菜蒸猪肉饭

 

Imediatamente na minha cabeça associei a um prato que a minha Mãe por vezes fazia, e que eu em tempos passados também fiz algumas vezes. Um dos pratos que me fizeram bem cedo entender que havia um mundo a descobrir à mesa. 

 

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O irmão da minha Mãe tinha estado no serviço militar em Macau e a minha tia era macaense. Por vezes ela fazia pratos da cozinha com que tinha crescido, e a minha Mãe aprendeu a fazer alguns. Um deles era uma carne de porco picada, temperada com molho de soja e cozinhada a vapor, que comíamos com arroz branco (só cozido em água, sem sal, como mais gosto dele). Como eu gostava daquilo! 

Pequei no telemóvel e fui ver o que era Zhacai - uns pickles de couve. Possivelmente a minha tia não os punha porque não tinha acesso a eles, mas não me parecia nada mal. Estava decidido!

Esperei, ansiosamente, até que me trouxeram este prato:

 

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Era mesmo isto! O dito zhacai ainda tornava o prato melhor do que me lembrava! Memórias de sabores de infância, recordações, tudo isto associado a uma boa dose de umami. Comida conforto onde menos a esperava... Não podia pedir mais!

 

 

06
Fev23

Lampreia - o luxo e o conforto

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Não me lembro de nenhum ano em que não tivesse comido, pelo menos uma vez, lampreia. Um ritual que partilho com algumas das minhas irmãs e sobrinhos. Por vezes em restaurantes de Lisboa, mas o ideal  mesmo é ir até ao Restaurante A Lena, no Apeadeiro da Barragem de Belver. Aconteceu este fim de semana.

Cresci a poucos quilómetros dali. A lampreia é para mim uma comida conforto, mas um conforto que é maior quando é cozinhada de forma idêntica à da que comia em casa dos meus Pais. Em restaurantes de Lisboa não é o mesmo... Além disso, este ano com a falta de lampreia, tornou-se um produto de luxo. Vi menus com doses a mais de 70 euros, com apenas 4 postas. Ali o preço é pouco mais de metade disso, pela refeição inteira - entrada, prato, sobremesa, bebidas e café. Para ajudar, o número de postas é cerca do dobro, comemos todos à vontade, e ainda trouxemos o que sobrou.

A lampreia vem de França, como aliás me disseram acontecer há já vários anos. Este ano nalguns rios em França a pesca está proibida, por questões de preservação da espécie. Tem que vir de outros rios, e vem menos.

Tinha ido ao restaurante A Lena há uns anos com alguns dos meus alunos, tinha escrito aqui sobre isso (parte I e parte II). Podia ter usado as mesmas fotos daquela refeição de há 6 anos, pois tudo estava igual. Gosto de aventura, mas também desta estabilidade e consistência.

Para terminar, uma excelente fatia de Tigelada, um doce que faz parte das minhas memórias gastronómicas.

 

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À saída estava a mostrar à minha sobrinha a mesa onde os meus Pais ficavam sempre, a dona apareceu e disse-lhe. Ela comentou: "Ah! Bem me parecia que as vossas caras me eram familiares. Sendo assim, vocês sabem mesmo o que é lampreia". 

Este ano não vou comer mais vezes, mas o ritual está cumprido e o gosto satisfeito. Estava tão boa! Para o ano lá estaremos de novo.

 

 

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