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Assins & Assados

Assins & Assados

15
Jan23

Eu fui ao NOMA. Não sou rica. Não pretendia ser Rainha Por Um Dia.

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(o primeiro prato do meu jantar, há muito tempo, no NOMA)

 

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O NOMA vai fechar daqui a 2 anos, mas na última semana não se falou de outra coisa. Tudo tem um princípio e um fim, pode haver mil razões que não vou discutir.

Contudo, curiosamente, no dia em que soube que o NOMA ia fechar estava a ler o último livro do Heston Blumenthal, Is this a Cookbook?,  em que ele diz:

What was I chasing? Recognition? Affirmation? A sense of self-worth? I don't know. Yet. (I'm still a work-in-progress.) Increasingly, though, I became unsatisfied with the search of perfection. It seemed like a creative cul-de-sac - for me at least - and I realised I needed to change my relationship with food and cooking. Was I a chef, with all the baggage that entails, or, when it came down to it, was I simply a human who cooks because cooking is my way of connecting with other people and sharing my beliefs? A lot of those beliefs remained largely unexplored. Perhaps it was time to do something about that.

Lembrei-me do NOMA. Pensei:  Quem sabe é apenas a altura de mudarem a relação com a comida e a cozinha. É humano que o seja.

Mas as razões só eles as poderão dizer. Se quiserem. Não ia escrever nada sobre este assunto, não tinha nada para dizer. Li algumas coisas, especulações que poderão até corresponder a parte da realidade, mas são bem mais simplistas, suponho que as motivações sejam complexas e com várias camadas.

Porque é que escrevi afinal? Porque o artigo do Miguel Esteves Cardoso no último Fugas - Umas palavrinhas enlutadas por ocasião da morte do Noma - me deixou desconfortável. Nem vou procurar muitas palavras novas... a sensação foi semelhante à que já tive, em tempos, devido a outros comentários.

Fiquei chocada e triste ao ler o artigo do Miguel Esteve Cardoso, não por causa das suas preferências gastronómicas, pois cada um está no direito de gostar do que gosta e do que o faz feliz, e de escolher os restaurantes que quer.

Agora dizer:

Restaurantes como o Noma são essencialmente saloios. Alimentam – a palavra está singularmente mal empregada – o sonho de ser Rainha Por Um Dia.

Parece-me uma atitude profundamente primária. Não é sério, revela uma falta de reflexão sobre a gastronomia em geral e as várias aproximações possíveis.

Não tem também sentido dizer:

Um bom restaurante é aquele onde se quer almoçar todos os dias.

Um restaurante onde se quer almoçar todos os dias, pode (e deve) ser ótimo, mas o NOMA é outra coisa. É comparar alhos com bugalhos.

Já agora, se o Miguel Esteves Cardoso diz que nunca foi ao NOMA, como afirma com tanta certeza que outros  Não foram mais vezes ao Noma porque a própria comida não se aguenta mais do que uma vez ou outra. ?   

É verdade que:

Redzepi cobrava centenas de euros aos clientes, mas dependia do trabalho de estagiários que trabalhavam de borla.

Já aqui tenho abordado este assunto diversas vezes. Mas muitos o fazem, quase todos os restaurantes a este nível o fazem, ou fizeram, não é uma característica do NOMA. Merece discussão, que tem havido, e felizmente esta situação começa a mudar.

A relação de cada um de nós com o que come, as expetativas que tem, o que valoriza... são diferentes. Válidos em todos os casos. Também por isso, este tipo de classificação do NOMA e dos clientes do NOMA não é admissível e é demagógico.

Também o é a forma como Miguel Esteves Cardoso discute o preço de uma refeição no NOMA. Claro que é bem mais do que se paga no restaurante onde se almoça todos os dias. Mas o que nos oferecem também é bem diferente, com várias componentes para além da que oferece o restaurante onde se almoça todos os dias. Só vai quem quer.

Eu não sou rica e fui ao NOMA. Não pretendia ser rainha por um dia. Queria conhecer um trabalho que tanto influenciou a gastronomia a nível mundial, perceber, poder falar com conhecimento de causa. Tudo isto até era mais importante do que o prazer físico, a importância de comer uma boa refeição. Mas esse também fez parte da minha experiência, gostei muito do que comi, mais (porque o que sentimos é determinado por mais do que o que está no prato) gostei da experiência global. Saí com vontade de voltar, e se fosse mais perto seguramente teria voltado. 

Para terminar, mais uma referência a Heston Blumenthal (do seu último livro) e uma questão.

Increasingly, I've come to see cooking in terms of quantum perpective - which, for me, at its most basic, means everything we do can be viewed in an infinite number of ways: how we experience it is determined by what perspective we choose.

As perspectivas são infinitas, será que tem algum significado classificar as dos outros (com base na nossa)? 

 

 

19
Dez22

Trindade - muito há a refletir sobre a nova reencarnação desta antiga cervejaria

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Há umas semanas li que, depois de muito tempo fechada para obras de remodelação, a Trindade tinha aberto. Há uns dias estava na Baixa à hora de almoço e decidi ir à Trindade.

Houve um período da minha vida em que ali ia muito frequentemente, fosse para almoçar ou jantar, ou apenas para umas cervejas com umas batatas fritas, uns croquetes ou uns rissóis. Deixei de ir regularmente, mas durante muitos anos continuei a ir ocasionalmente. Há uns anos que não ia e resolvi voltar àquele lindíssimo espaço.

Comecei por notar que o espaço da sala estava organizado de uma forma diferente, mas os azulejos ainda mais bonitos.

 

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Antes de me sentar, até mesmo antes de entrar, sabia o que ia comer. Tinha decidido que ia reviver velhos tempos e hábitos. Nem precisaria do menu, mas dei uma vista de olhos, aos pratos e às bebidas. Nesta altura aconteceu o 1º contratempo, tinha planeado beber uma imperial mista, como habitualmente ali fazia. Não vi na lista cerveja Sagres preta. Olhei para as torneiras das cervejas a copo. Não, não estava lá... Se calhar devia ter pedido uma imperial "normal", mas gosto de cervejas IPA, pedi a Profana. Achei graça ao nome, senti-me profana, por ali estar a beber uma cerveja de garrafa, coisa que nunca tinha feito. A garrafa era bonita, a cerveja agradável. Mas não era o mesmo...

Para entrada pedi um croquete. Ele chegou e quando o ia comer apeteceu-me, como habitualmente fazia, pôr-lhe umas gotas de mostarda. Olhei para a mesa, não havia mostarda - 2º contratempo. Não havia no momento nenhum empregado de mesa por ali e fui comendo o croquete. Cremoso e saboroso, soube-me bem. Mas sem mostarda, não era o mesmo... 

 

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Com o bife chegaram mais contratempos. Costumava temperar as batatas com sal, pimenta e um fio de mostarda. Nada sobre a mesa... não exagero se disser que me senti um pouco peixe fora de água, desconfortável, faltavam ali coisas habituais e importantes. Desta vez pedi sal e mostarda. Veio um moinho de sal de madeira. Tudo bem, não era o que esperava, mas era coerente com as pretensões do novo ambiente. Quando a mostarda chegou... 3º contratempo (dois já relacionados com a mostarda). Em vez de vir num frasco que permitisse dosear, veio uma tacinha com mostarda. Nada para a tirar, tirei com a minha faca. Não gostei, não permitia pôr um fio de mostarda sobre as batatas, de forma a que cada uma não ficasse a saber muito a mostarda, mas quase todas tivessem uma nota de mostarda. Achei um desperdício (coisa que nunca caiu bem, mas nos tempos atuais ainda menos). Não usei nem um quarto da mostarda que trouxeram e o destino do resto foi o lixo. Imagino que os frascos de plástico amarelo não fossem coerentes com a estética atual, mas arranjem outros que desempenhem a função... 

 

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Antes de começar a comer o bife, e depois de temperar as batatas, peguei numas com a mão para acompanhar uns golos da cerveja. Quando chegaram à boca, nem foi surpresa, pois já o tinha sentido, as batatas estavam murchas - 4º contratempo. Comiam-se, mas eram apenas umas batatas fritas sofríveis.

Iria o bife salvar a situação? Era bom era, mas não salvou. Há tanto tempo que não ia ali, apetecia-me um bife bom, pedi um bife de lombo mal passado. Estava mais para o médio, a tender para bem passado. Quase parecia que tinha sido batido, embora admita que não foi, mas algumas partes tinham um corte horizontal a meio que interferia com a textura. As memórias que temos podem ficar desfocadas com o tempo... mas o molho pareceu-me diferente, e para pior. Era levemente adocicado, felizmente a mostarda e o sal ajudaram a salvar um pouco a situação. Não tinha pão, não molhei pão, e a parte final do bife foi comida já sem molho, pois já tinha acabado. Era preciso pouparem no molho? Ou seja, o bife foi o 5º contratempo, e o molho o 6º contratempo.

Perguntaram se queria sobremesa, claro que tinha pensado num daqueles pudins flan individuais, tão característicos das cervejarias, mas não havia - 7º contratempo. Havia várias sobremesas, mais coerentes com as pretensões do espaço, mas não com as minhas.

Pedi a conta - 8º contratempo. Um bife com batatas fritas sofrível, uma cerveja e um croquete custaram 35,70 euros (já com a gorjeta sugerida na conta - esta não chegou a ser um contratempo, mas hei-de voltar a este assunto noutra altura). Achei caro, muito caro para aquilo que me ofereceram! Sei que o Alexandre Silva é consultor, não sei qual foi o seu papel, talvez na introdução de novos pratos e sobremesas, que não provei.

A Trindade perdeu aquele ambiente boémio, está agora mais séria e com outras pretensões. Talvez agrade a turistas e a quem nunca a conheceu antes, mas acredito que quem a conheceu saia com as expetativas defraudadas, como me aconteceu. Aliás, depois de sair fui ler alguns comentários de clientes e vários se queixam de alguns dos pontos que referi.

Como dizia há tempos, as expetativas por vezes são lixadas. Querer reviver o passado, também pode dar mau resultado, os tempos são outros, e nós somos outros. Mas, apesar disso, acho que muito há para refletir sobre esta nova vida da Trindade. Não voltarei nos tempos mais próximos... E tenho pena!

 

Cervejaria da Trindade  - R. Nova da Trindade 20 C, Lisboa

 

07
Dez22

Lessons in Chemistry - ou lições de vida, porque na vida há muita química...

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O Lessons in Chemistry talvez tenha sido o livro cuja leitura mais me empolgou nos últimos tempos. Elizabeth Zott era química e investigadora mas a vida dá muitas voltas inesperadas, e acabou por, de certa forma contra sua vontade, ter um programa de cozinha num canal local de televisão. A forma como abordava a cozinha era pouco comum, sobretudo tendo em conta que tudo se passava no final dos anos 1950 - início dos 1960.

"Exciting news," she said. "Today we're going to study three different types of chemical bonds: ionic, covalent, and hydrogen. Why learn about bonds? Because when you do you will grasp the very foundation of life. Plus, your cakes will rise."

ou

"Now ," Elizabeth said to her at-home viewers, "I'm confident you used our short break to chop your carrots, celery, and onions into small disparate units, thereby creating the necessary surface area to facilitate the uptake of seasoning, as well as to shorten cooking time. So now things look like this," she said tipping a pan at the camera. "Next, apply a liberal amount of sodium chloride. "

Eram exemplos de frases que dizia no seu programa de televisão Supper at Six, frases que desesperavam a equipa de produção e os diretores da estação que, do outro lado das câmaras, faziam comentários como:

"Would it kill her to say salt?"

ou 

"Please be normal."

Mas, ao contrário de todas as expetativas que tinham, o público que assistia ficava completamente suspenso das palavras dela e tomava notas. As donas de casa não perdiam um programa. Dizia uma das mulheres que seguia o programa:

"I like how she uses science-y words" [...] "It makes me feel  - I don´t know - capable."

Foi tal o sucesso que algum tempo depois o programa começou a ser transmitido num canal nacional. 

O livro foi-me oferecido por uma das minhas filhas, disse que tinha lido sobre ele, e achou que teríamos algo em comum. Foi bom ler e ver descrito um ambiente de investigação que conheço, com algumas descrições de espaços e situações bastante familiares. Foi bom ver uma abordagem dos processos culinários que é um pouco a minha. Foi bom ver a descrição de como algumas mulheres se sentiam empoderadas com isso, pois algumas vezes em ações de divulgação de ciência também o senti. Depois das explicações que dávamos, algumas mulheres constatavam que o conhecimento científico permitia justificar os procedimentos que seguiam, e assim sentiam valorizados os seus conhecimentos como nunca tinha acontecido antes. À parte isto, nós e as nossas vida tinham pouco em comum. 

Elizabeth Zott vive num mundo bem próprio, segundo as suas regras, e recusa qualquer cedência. Ao longo das páginas fui ficando cada vez mais cativada pela sua determinação, e pelos momentos de fraqueza, por momentos duros e outros mais doces, pela força desta mulher.

Lessons in Chemistry é a primeira novela de Bonnie Garmus, é divertida e envolvente, aborda temas sérios de uma forma leve e dá que pensar... Achei espantosa a qualidade da pesquisa feita, e eventualmente dos consultores usados, em que não há um erro nos conceitos químicos ocasionalmente transmitidos, de forma simplificada, ao longo do livro e na sua aplicação à cozinha.

Adorei! Vale mesmo a pena ler.

 

PS

Verifiquei depois de ter escrito o post que o livro está traduzido para português - Lições de Química.

 

 

16
Out22

A Waiter in Paris - Um relato fascinante de uma realidade invisível para quem frequenta restaurantes

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Há alguns meses, numa pequena livraria onde entrei por acaso, vi um livro que me chamou a atenção A Waiter in Paris - Adventures in the Dark Heart of the City de Edward Chisholm. Nunca tinha visto nada no género sobre quem nos recebe nas salas dos restaurantes e determina em grande parte a nossa experiência. Nas prateleiras estava um único exemplar, que veio comigo. Ainda demorei algum tempo até ter oportunidade de o ler, mas quando comecei foi difícil parar.

Eduard Chisholm é inglês, depois de terminar a universidade, e de uma série de pequenos trabalhos mal pagos e sem futuro em Londres, foi com uma namorada francesa viver para Paris. Ali a tarefa de arranjar trabalho não foi mais fácil, até porque nem falava francês. O namoro acabou, a namorada voltou para Londres, e ele ficou em Paris. Nunca tinha tido a menor intenção de trabalhar em restaurantes, mas quando o dinheiro se esgotou acabou por arranjar trabalho como empregado de mesa num grande restaurante em Paris. Não identifica o restaurante, refere apenas que era numa zona central, grande, com um ambiente glamoroso, frequentado por pessoas com alguma disponibilidade económica, por exemplo das áreas da moda, do espetáculo e da finança.

Foi contratado para dar apoio aos outros empregados, não tinha experiência, nem percebia o que lhe diziam em francês, mas o L' Anglais, como era conhecido, tinha uma boa presença. Sobreviveu, evoluiu e acabou por chegar a empregado de mesa de pleno direito, até que um dia, exausto e sem comer, num intervalo desmaiou, caíu e partiu um braço. Acabou a sua carreira no restaurante, mas a sua vida parisiense continuou com outros trabalhos mal pagos e condições de vida e alojamento muito precárias durante quatro anos.

O sonho e objetivo de vida de E. Chisholm era escrever, acabou por usar esta experiência como tema para o seu primeiro livro, que foi publicado em Maio de 2022. Publicou sobre o assunto na imprensa, nomeadamente no The Guardian e o The New York Times. Este livro foi o início da sua carreira e abriu-lhe novas oportunidades.

No livro A Waiter in Paris, que foi referido na Fortune Magazine como Kitchen Confidential for Generation Z, fala do contraste entre a sala do restaurante, onde reinava a calma e o glamour, e o quase inferno assim que se ultrapassava a porta para a cozinha. Fala de um trabalho fisicamente muito duro, durante longos períodos quase desumanos, sem comer, com salários muito baixos, o que levava a uma quase luta pelas grojetas, e das atitudes abusivas e humilhantes de alguns dos gerentes. Fala dos horários divididos e da exaustão, de não ter onde descansar, sobretudo no inverno, em que frequentemente a saída que encontrava era ir dormir para as casas de banho de hotéis de 4 ou 5 estrelas perto do restaurante. Fala dos seus colegas de trabalho (um deles português) e das relações entre eles. Refere como a qualidade da comida oferecida se foi degradando, para reduzir custos. De uma forma muito viva, e vivida, relata o mundo para além da porta que separava a sala da cozinha. Mundos bem diferentes de cada lado daquela porta! 

Um relato fascinante de uma realidade, que acredito não represente todos os tipos de restaurantes, que é invisível para os clientes. Dá que pensar...

 

 

30
Set22

Leite sintético - prós e contras de um produto que poderemos consumir num futuro próximo

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Todos os dias nos chegam sinais de que a forma como nos alimentamos está a mudar, e que mudanças drásticas virão no futuro. Todos vamos entendendo que elas são inevitáveis com uma população mundial a aumentar e com a crise climática. Na sequência do post sobre desperdício de leite, faz sentido abordar a produção de leite sintético. Este já não é apenas uma produto do futuro, ele está aí, mas ainda sem capacidade de competir com a produção tradicional de leite.

Em dezembro de 1931, num texto que escreveu para a Strand Magazine, intitulado Fifty Years Hence (que vale a pena ler e refletir um pouco sobre o que é dito), Winston Churchill,  refere como o conhecimento científico foi decisivo ao longo dos anos para permitir que milhões de pessoa pudessem ter uma vida mais segura, variada, cheia de esperança e escolhas, e também sobre a evolução que previa para as cinco décadas seguinte. Nesse texto dizia: 

Os micróbios, que atualmente convertem o azoto do ar nas proteínas que permitem aos animais viverem, serão usados e postos a trabalhar sob condições controladas, da mesma forma que a levedura de padeiro o é agora. Serão desenvolvidas novas linhagens de micróbios que farão uma parte considerável dos  nossos processos químicos em nosso benefício. […] Escaparemos do absurdo de criar uma galinha inteira para comer o peito ou a asa, cultivando essas partes separadamente em meio adequado. Naturalmente, os alimentos sintéticos também serão usados ​​no futuro. Nem os prazeres da mesa precisam ser banidos. […] Os novos alimentos serão, desde o início, praticamente indistinguíveis dos produtos naturais, e quaisquer mudanças serão tão graduais que escaparão à observação.

Já passaram 90 anos, ainda não estamos bem aí, mas quase, a carne cultivada está a ser desenvolvida, e o equivalente a carne picada ou frango para nuggets, já é uma realidade, a preço cada vez mais razoáveis, mas ainda sem possibilidade de ser comercializada em larga escala e de forma competitiva. Mas lá se chegará a médio prazo. No caso do leite sintético é mais fácil do que no da carne, pois não há os problemas de textura e construção de tecidos… da carne.  

A produção de leite sintético, não requer vacas ou outros animais, mas este tem uma composição bioquímica semelhante à do leite animal e terá sabor, aspeto e textura semelhantes também. É produzido usando uma tecnologia denominada fermentação de precisão em que os micro-organismos produzem proteínas idênticas às do leite (proteínas do soro e caseína). Estudos realizados demonstraram que estas são as principais responsáveis pelas características de sabor e textura do leite, assim como pelas propriedades que permitem a produção de uma vasta gama de lacticínios. Posteriormente as proteínas produzidas no processo de fermentação são misturadas com água e são adicionados minerais, gordura, açúcar (não necessariamente a lactose, o que permite o seu consumo por intolerantes à lactose) e aromas.

 

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Já são produzidas proteínas numa escala relativamente grande, que são usadas nos EUA para produção de gelados e leite, ou queijo mozzarella. Na Austrália também já é produzido leite sintético por este processo. Espera-se que, em menos de uma década, o leite sintético fique mais barato que o leite de origem animal e possa ser consumido por si só, ou utilizado pela indústria alimentar.

As vantagens são muitas, este leite, não recorrendo a nada de origem animal, é compatível com uma grande variedade de opções alimentares, e não envolve problemas éticos relacionados com o sofrimento dos animais. Por outro lado, a pegada ambiental é bem menor, pois evita-se o problema da libertação de metano pelas vacas, assim como o da produção de alimentos para elas, portanto libertando terras para outras produções, e havendo menor consumo de água. Acredito que, destes pontos de vista, terá também vantagens relativamente às inúmeras bebidas à base de vegetais que têm vindo a substituir o leite para muitos consumidores. Tendo em conta que 80% da população mundial consome regularmente lacticínios, o impacto pode ser grande.

Tem ainda um efeito importante, tendo proteínas idênticas às do leite, e portanto com a mesma funcionalidade, permitirá manter as tradições de muitos países, por exemplo as da produção de queijo, apesar da transição para dietas baseadas em plantas.

Mas, não há rosas sem espinhos, e nesta transição os espinhos também são muitos… vai ter um impacto grande na produção de lacticínios. Ainda há um caminho relativamente longo a percorrer, que vai precisar de grandes investimentos, pesquisa e construção de infra-estruturas para produção, até  que possa ser uma alternativa aos produtos tradicionais em larga escala. Mas é um processo que certamente ocorrerá e que terá grande impacto nos produtores de leite tradicionais. As grandes empresas de lacticínios, prevendo a importância desta tecnologia no futuro, começam a investir neste tipo de investigação e no futuro iniciarão certamente a produção de leite sintético de forma a fornecer os seus mercados.  Não que a produção tradicional de leite vá desaparecer completamente, mas certamente a escala será menor e os processos de produção também menos intensivos, e o leite produzido será considerado um produto premium.

Hoje estes produtos ainda causam estranheza a muita gente. Até alguma rejeição. Mas, como também dizia W. Churchill no tal artigo:

Todos nós aceitamos as conveniências e facilidades modernas à medida que nos são oferecidas, sem sermos gratos ou conscientemente mais felizes. Mas simplesmente não poderíamos viver sem elas.

 

1ª Foto DAQUI

2ª Foto DAQUI

01
Set22

Pescada, tão boa e tão esquecida

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É tão raro ver pescada nos menus dos restaurantes de fine dining em Portugal. Desconheço porque está tão ausente, mas gostava de saber...

Recentemente, com dois dias de diferença comi, em Cardiff, dois excelentes pratos de pescada. O primeiro foi num restaurante espanhol, o Asador 44. Pena ser longe, pois gostava de voltar e provar outras coisas. 

 

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Hake, Prawn Bisque

 

Quando do pedido, disseram-me que não tinha acompanhamento, que tinha que pedir à parte. Olhei para as possibilidades e nenhuma me atraiu, todas com demasiados sabores. Pedi uma sugestão e disseram-me que o melhor eram as batatas fritas. Assim foi. Quando chegaram provei, eram boas, mas sendo fritas em azeite tinham um sabor forte, demasiado forte para este prato. Comi meia dúzia e o resto ficou. No final o empregado levou, não perguntou nada, eu não disse nada, mas elas não apareceram na conta.

Dois dias depois escolhi de novo pescada num almoço no Heaney's, também em Cardiff.  Também aqui o acompanhamento teve que ser pedido à parte e só havia uma hipótese de escolha, mas desta vez não ficou nem uma batata...  Noutro dia conto.

 

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Cornish Hake | Courgette | Buttermilk | Smoked Cod Roe

 

Alguém me consegue explicar porque é tão raro encontrar pescada nos restaurantes em Portugal?

 

1ª foto DAQUI

 

07
Ago22

De novo as memórias... as minhas... mas há mais mundo para além delas!

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Quando li o título da notícia no Guardian, sabia exatamente do que estavam a falar... Conheço bem o Whitelock's, o pub mais antigo de Leeds, com mais de 300 anos, descrito pelo poeta John Betjeman como very heart of Leeds . No final do século 19, quando foi adquirido pela família Whitelock foi relançado como um sofisticado bar de almoços, pensa-se que foi o primeiro edifício em Leeds a ter iluminação elétrica. Foi decorado com vitrais, espelhos e um balcão de bar com azulejos de cerâmica e tampo de cobre. Foi esta decoração, muito bem conservada, que sempre conheci. Fiquei contente. Mas perguntei-me "Então e a comida?".

O trabalho que fiz para o doutoramento foi em colaboração com um grupo de investigação da Universidade de Leeds. A primeira vez que lá fui, há mais de 30 anos, convidaram-me para jantar no Whitelock's. Penso que foi nesse jantar que comi pela primeira vez um Yorkshire Pudding, um prato que adoptei. Depois voltei lá algumas vezes, sobretudo quando estive a viver um ano em Leeds durante o pós-doutoramento. 

Há poucos meses fui passar um fim de semana a Leeds com as minhas filhas. Fomos ver a nossa casa e tirámos fotos à porta, fomos ver a escola delas e tirámos muitas fotos, e quis voltar ao Whitelock's. Marquei mesa para um dos jantares. Entrar no Whitelock's foi um choque... Depois de dois anos de muitos períodos de isolamento e muito cuidado, passar no pequeno beco que dá acesso à entrada foi um desafio. Parecia o metro em hora de ponta, ninguém tinha máscara e todos tinham um copo na mão. Lá dentro, até chegar à zona das mesas, a situação não era diferente. Só tive mesmo coragem pois tinha acabado de recupera do Covid e achei que teria alguma imunidade. 

Gostei de voltar, o interior muito bem mantido é lindíssimo. A atmosfera característica de um pub, o ruído (imenso) e  o (grande) movimento, apesar do que disse, souberam bem. Um regresso à normalidade. 

 

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Antes de decidirmos ir, comentei com a minha filha que gostava muito de ir, mas se calhar não havia opções veganas. Uma consulta ao menu no site, mostrou havia várias e isso não seria problema. Mas, e mais uma vez um choque, não havia era Yorkshire Pudding, o que eu tencionava comer. Apenas era servido com o Sunday Roast. Comi um prato vegano, que estava bastante bom. Reconheço até que era coerente com o espaço. Mas senti a falta do Yorkshire Pudding que habitualmente comia.

 

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Spiced Cauliflower Steak
red pepper sauce, tenderstem broccoli, Hasselback new potatoes

 

Por isso, quando li o artigo perguntei-me "Então e a comida, será que não devia ser também protegida?". Mais um vez consultei o menu no site, e fiquei na dúvida se tinha razão. Se calhar não tinha. Há que evoluir, passaram 140 anos desde que o Whitelock's funciona como restaurante, tudo mudou... o menu necessariamente também. O de há 30 anos, devia ser já bem diferente do inicial. Conseguiram adaptar a oferta a um mundo que exige opções mais sustentáveis e uma adaptação a um novo público. O menu é interessante,  e consegue conjugar novos pratos, uma nova forma de comer, com pratos mais tradicionais. Tudo o que comemos era bem coerente com o espaço, bom e bem confecionado. O Yorkshire Pudding continua a ser servido no Sunday Roast. Podemos pedir mais do que isso? Acho que não.  A questão que me pus nem sequer é coerente com o que penso em geral.

De novo as memórias... as minhas... mas há mais mundo para além delas!

 

 

29
Jul22

As expetativas... Por vezes, são lixadas...

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Já que ia a Londres para a sessão de lançamento dos chocolates Vinte Vinte, fui cedo e portanto almoçava. Fui à lista onde anoto algumas coisas que vão surgindo, e havia um restaurante onde gostava muito de ir. Tentei marcar... em vão, só daí a umas semanas, outros não estavam abertos ao almoço. Pesquisei e surgiu o Lahpet - a localização era conveniente; ia provar um novo tipo de cozinha, birmanesa, que desconhecia e da qual, mesmo em Londres, há muito poucos restaurantes; e críticos que respeito, e em geral tudo o que encontrava, tinham-me despertado o interesse. Até o Guia Michelin lhe tinha atribuído um Bib Gourmand e referido que a cozinha era autêntica.

Há dois restaurantes Lahpet (que em birmanês significa chá) em Londres, um em Shoreditch e outro, mais recente, em Covent Garden. Resolvi ir ao de Schoreditch, há algum tempo que não ia para ali. Além disso este restaurante foi o primeiro a abrir, na sequência de um projeto que tinha começado como uma banca perto de London Bridge e passou depois para um arco em Hackney. Depois de deambular pela zona, fui até ao restaurante e .... dei com o nariz na porta! Só abria para jantar. Eu só tinha visto o horário do de Covent Garden... Estava decidido que o almoço era no Lahpet, e lá fui para Covent Garden.

Depois de tudo o que li, eu podia lá viver sem provar um Lahpet Thohk...

Grace Dent dizia no Guardian

That lahpet thohk salad is a sterling example of this delightful funkiness, with pickled tea leaves interwoven with double-fried beans,wisps of chopped cabbage, plump, sweet bursts of tomato and salty dried shrimp; sesame seeds, crunchy peanuts and a liberal amount of garlic oil and raw garlic also put in an appearance. To a western gaze, at least, this might be unlike any salad seen before, plus it’s the colour of Fozzie Bear and army-surplus combat pants. It comes with a warning that, due to the level of caffeine in it, it may well keep you up at night. Each time I order lahpet thohk, I’m unsure I love it, but I am always compelled to scoop up every last complex, enticing bite.

Segundo Jay Rayner

If you don’t know much about Burmese cuisine, then Lahpet’s menu is a real eye-opener

Lahpet thoke is a traditional salad made with pickled tea leaves, but there is so very much more going on here than the humble word “salad” suggests. It’s a salad with a lengthy CV and killer references. Alongside the tea leaves and shredded cabbage there’s the crunch of peanuts and of those crisp-fried broad beans we are familiar with from Spanish delis. There are dried shrimps and sesame seeds and a little chilli, for while a certain amount of heat is part of the story, it’s not there to bash you about the head. There’s a sweet-sour dressing with the high waft of garlic oil. It’s a heap of good things that needs to be excavated in search of ever deeper textural joy.

Para Tom Parker Bowles e Olly Smith:

Lahpet thohk. Pickled tea leaf salad. A dish, in the words of food writer Mimi Aye, that is ‘the most iconic of Burmese foods and unique to the country’. It’s also one of the most thrilling things I’ve eaten for years, at once alien and utterly familiar; soothingly rich, softly astringent, with a pert acidity and low throb of garlic and chilli. The texture also beguiles, crisp peanuts and deep-fried beans versus the comforting chew of tea and dried shrimp.

 

Nem foi preciso pensar muito sobre a entrada que ia pedir. Já ia decidido antes sequer de entrar no restaurante.

 

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Lahpet Thohk (Tea Leaf Salad)

Pickled Tea, Double Fries Beans, Cabbage, Tomato, Chilli, Dried Shrimp, Sesame Seeds, Garlic Oil, Peanuts

 

As expetativas eram tão altas, que a complexidade, a originalidade, os sabores fortes e únicos... ficaram aquém do que esperava. Não me emocionou, e nem o efeito da cafeína senti. Nas folhas de chá (que tive o cuidado de provar separadamente) também não encontrei o umami que vi referido em alguns comentários. Se era boa? Era, sem dúvida. Se esperava mais? Sim, sem dúvida. Fiquei com a sensação que as expetativas tinham prejudicado a minha apreciação. Quase desejei que não fossem tão altas...

Para prato principal, pedi o que era descrito por Jay Rayner como the most showy plate of food. Neste caso a escolha não foi tão fácil, havia várias coisas que gostava de provar. 

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Ngar Kyaw Hnut (Fried Bream)

Tomato, Shallot & Garlic Soy Glaze, Crushed Double Fried Beans & Peanuts, Greens

 

Uma dourada a que retiraram os filetes, que foram fritos e servidos com um molho de tomate cebola e alho, bastante picante, contribuindo amendoins e feijões fritos com uma certa crocância. Para além dos vegetais de acompanhamento, também pedi um arroz branco. A espinha era servida frita, o que tornava o prato impressionante, e o empregado sugeriu que a comesse também. Comi uns pedaços, mas o efeito visual era o mais interessante.  Um prato que acabou por ser mais marcante do que a salada.

A conta, sem bebidas, e com a gorjeta sugerida, ficou pelas 35 libras, um valor que achei muito aceitável, não só considerando a qualidade e quantidade que comi, mas também tendo em conta que estava numa zona turística de Londres, num restaurante com um espaço moderno e agradável e com boas críticas, que serve comida birmanesa, mas apresentando-a de forma mais requintada e sofisticada.

Hei-de voltar, provar mais uns pratos e dar mais uma oportunidade à salada, agora com expetativas mais realistas. É que as expetativas por vezes são lixadas. 

 
 

 

 

19
Fev22

Foie-gras e faux-gras que me deram muito que pensar...

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Li há tempos um artigo do The Guardian que me deixou muito tempo a pensar, e cada dia sentia tudo o que era ali dito como mais absurdo. Pensei escrever aqui sobre ele, mas a motivação não tem sido muita e o tempo ainda menos... Uma vez li que o trabalho é como um gás, que se deixarmos ocupa o tempo todo. Também tem acontecido. Enfim... sei lá... não interessam as razões, a verdade é que tenho tantas saudades de escrever, quanto preguiça de o fazer.

Um dos comentários do Adriano esta semana, espicaçou um pouco a minha vontade de escrever. Lembrou-me o dito artigo, que andou muito tempo em ruído de fundo na minha cabeça.

Pois bem... o artigo é este - UK government asks chefs for vegan recipes to replace foie gras.  Fazendo um brevíssimo resumo, aparentemente a venda de foie-gras será proibida no UK em breve, e é objetivo do governo reunir chefes para os incentivar a criar alternativas veganas que preencham o espaço deixado pelo foie-gras.  Refere ainda que o chefe Alexis Gauthier, um francês que tem um restaurante em Londres, deixou há muito de vender foie-gras, um produto muito presente no restaurante até essa decisão, e passou a servir um faux-gras feito de cogumelos, lentilhas e nozes - cujas receitas está no artigo. Segundo o artigo, o governo do UK pediu-lhe a receita e convidou-o para conversas com conselheiros políticos, para ver se o produto que desenvolveu poderia preencher a lacuna no mercado causada pela proibição do foie-gras. Foram também chamados outros chefes de restaurantes veganos para discutir os desafios e oportunidades associados a alternativas éticas ao foie-gras.

Depois de ler o artigo ainda parei uns segundos para pensar se era dia das mentiras. Não, não era...

Acho uma hipocrisia um país, uma cidade... proibir o comércio de foie-gras. A razão apresentada para isso, é a crueldade animal, o sofrimento dos patos e gansos. Há quem diga que nalgumas produções sofrem, noutras não, não sei, nem para aqui interessa, consideremos que sofrem. As galinhas criadas em gaiolas, sem se poderem mexer para produzir uma carne barata também sofrem. As vacas que são mortas para produzir carne, também sofrem. As vacas a quem retiram os filhos para produzirem leite, também sofrem. Ora, o número de animais nestes três casos, e alguns outros que não referi, é muito maior do que o de gansos e patos para a produção de foie-gras. Então, porque não há legislação equivalente para todos os casos, mas apenas para um deles? Para aquele que é mais fácil. Não seria melhor deixar a decisão a cada chefe e a cada consumidor?

O foie-gras é um produto de luxo, acredito que mais de 90% pessoas nunca tenham comido foie-gras, e quem o come, não o come todos os dias. É fácil proibir e passar uma imagem de preocupação com os animais. Mas o resto? Não se pensa nisso? É que o problema seria bem maior... 

Sendo o foie-gras um produto de luxo e não essencial, parece-me absurda a preocupação do governo do UK em arranjar um substituto, um faux-gras, considerado mais ético. Porquê para um produto de luxo? É função do governo? Do meu ponto de vista é absurdo e um pouco ridículo até. Tanto mais que há já variadíssimas alternativas veganas a foie-gras, e se se googlar um pouco encontram-se várias receitas.

Por outro lado, um chefe de um restaurante que vende foie-gras, que é na maioria dos casos um restaurante de topo, não precisa que lhe vão ensinar a fazer uma alternativa parecida com o foie-gras. Ou vende outros produtos e pratos, ou, se quiser, é papel dele fazer a sua versão, não vai certamente fazer a do Alexis Gauthier.

Eu gosto de foie-gras, como (raramente) foie-gras, e sinceramente não me pesa mais na consciência do que quando como um frango assado numa churrascaria ou uma lagosta que foi metida viva na água a ferver. Há assim tanta diferença?

 

Foto de Faux-gras DAQUI

 

 

17
Ago21

Uma sobremesa do Estoril Mandarim que me levou muitas semanas a "digerir" - Parte 2

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Nunca imaginei a quantidade de horas e trabalho que seriam necessárias a "digerir" o Pastel de Nata Chinês do Estoril Mandarim... Mas também não imaginava como essa "digestão" seria interessante e me permitiria aprender muitas novas coisas. Estando a questão das influências no desenvolvimento dos Daan Tat (os ditos pastéis) tão ultrapassada quanto possível, pois não é bem clara para ninguém, passei à questão seguinte - como se faria a massa folhada dos pastéis?

 

Vi muitas receitas dos Daan Tat, e muitas fotos deles. Nalgumas o folhado da massa era bem evidente, mas diferente da dos Pastéis de Nata, noutras não se notava tanto. Vi também que basicamente a receita da massa podia ser dividida em dois grupos, aquele em que se usava uma técnica com as dobras características da massa folhada, ou uma outra em que isso não acontecia, e se misturavam os ingredientes todos da massa no início. Foi a primeira que me interessou mais, pois foi a que me pareceu dar resultados mais parecidos com o que eu tinha comido e me pareceu mais interessante.

 

A técnica usada para preparar a esta massa está bem ilustrada nesta receita das Egg Tarts do site Taste Asian Food, mas o processo basicamente surge em muitas outras receitas destes pastéis. Ou até apenas em receitas de massa folhada chinesa, ou de outros produtos, como uns folhados de carne de porco assada.

 

A principal diferença relativamente à massa folhada tradicional, é que enquanto nesta se faz uma massa e se introduz nela um bloco de manteiga/margarina para separar as camadas, na técnica usada na massa folhada chinesa são usados dois tipos de massas, uma a que chamam massa de água (feita com farinha, ovo, água e por vezes um pouco de gordura), e uma outra que se chama massa de gordura (com farinha e gordura, originalmente banha, mas pode ser manteiga ou outra gordura sólida). Estende-se, então, a massa de água e no interior coloca-se a massa de gordura, que vai separar as camadas. As características das duas massas folhadas são completamente diferentes. Muito interessante! A grande diversidade de técnicas nas várias culturas gastronómicas fascina-me.

 

A resposta, ou pelo menos hipótese de resposta, à questão relativa ao uso de leite nestes pastéis, numa região do mundo em que a grande generalidade da população é intolerante à lactose, surgiu também ao ler as receitas. Verifiquei que de facto é usado leite no recheio dos pastéis, mas em todas as receitas o leite usado era leite evaporado. Questiono-me qual será a razão, terá a ver com a disponibilidade, já que o leite é pouco consumido? Ou será pelo sabor, pois é necessariamente diferente? Para ter menos lactose não é, pois esta mantém-se.

 

O leite evaporado é leite não adoçado (ao contrário do condensado, a que é adicionado muito açúcar), mas a que cerca de 60% da água foi removida. Fica assim mais espesso e é possível, de certa forma, reconstituir o leite juntando partes iguais de leite evaporado e água. Curiosamente, em todas as receitas o açúcar (muito pouco, pois os chineses não consomem coisas muito doces) é diluído em água, e é a esta calda que se junta o leite evaporado e depois se mistura aos ovos. A quantidade de água varia, mas em geral é de duas a três vezes a quantidade de leite evaporado. Ou seja, o leite é muito diluído com água e, portanto, cada pastel tem pouco leite.

 

Dado que uma intolerância ao leite, não é uma alergia à proteína do leite, pois se fosse a situação e as consequências eram bem mais graves, neste caso a diminuição da quantidade de leite pode reduzir as consequências. De facto, no caso de intolerância (e pelo que li os graus de intolerância podem variar), quanto menos lactose se ingerir, menor o risco de desencadear sintomas. E as receitas mostram que a quantidade de leite em cada pastel é relativamente reduzida.

 

Uma longa "digestão" mas que me deu tanto ou mais prazer do que comer o Pastel de Nata Chinês no final de um almoço de Dim Sum, tal como se tornou habitual no século passado.

 

 

Foto DAQUI 

 

 

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