A Cavala Algarvia e as associações improváveis que despoletou.
O objetivo era um jantar rápido e leve antes de ir para casa. Estava na altura pelo Saldanha e decidi ir ao Lota Sea & Fire. Para entrada pedi uma Cavala Algarvia. Chegou-me um prato com cavala, a polpa interior de tomate e uma água de tomate, para além de outros temperos. Enquanto comia, com muito agrado, fui fazendo várias associações à primeira vista improváveis... associei-o à minha Mãe (que nunca fez um prato assim, nem me lembro de ter cozinhado cavala) e ao Heston Blumenthal, onde comi cavala num prato diferente, de facto um dos pratos que considero dos melhores que comi na minha vida - o Sardine on Toast Sorbet. Mas a cavala também não era particularmente importante nestas associações. De facto, o importante era a polpa e a água do tomate.
Lembro-me de fazer Doce de Tomate com a minha Mãe, e é bom lembrá-lo hoje que é Dia da Mãe. Na época do tomate havia sempre um dia em que se faziam alguns tacho de doce de tomate para o ano inteiro. A receita era esta:
Cortávamos uma cruz superficial nos tomates, colocávamo-los um ou dois minutos em água muito quente, e a pele saía facilmente. Depois, abríamos os tomates ao meio e tirávamos toda a polpa interior. Era esta a parte que mais me intrigava. Havia um passador de rede por cima de uma tigela e a minha Mãe dizia-me para tirar a polpa interior e todas as sementes com uma colher de chá e deitar tudo para o passador. A ideia era que as sementes ficassem no passador e o resto da polpa passasse para a tigela. Quando lhe perguntei um dia porque fazia aquilo ela respondeu-me que aquele líquido era a parte mais saborosa do tomate. Nunca mais me esqueci desta resposta.
Uns anos depois soube que o Heston Blumenthal tinha comentado com uns químicos da Universidade de Reading no Reino Unido que a polpa interior do tomate, à volta das sementes, era muito mais saborosa que a parte restante mais firme e carnuda, que se sentia mais o gosto umami. Ficaram curiosos, foram pesquisar a literatura, e verificaram que não havia registos de comparações do sabor de componentes de diferentes partes do fruto do tomate, nem da análises do teor de compostos umami entre diferentes variedades de tomates. Ficaram interessados em investigar este assunto e publicaram posteriormente os resultados.
Usaram um painel de provadores para provar a polpa interior do tomate e a parte mais firme. No entanto, para não haver influências da textura ou do aspeto, separaram a duas parte do tomate, meteram num liquidificador e a seguir filtraram para obter uma água de tomate em ambos os casos. Foi essa água que foi provada e as conclusões foram as da tabela seguinte:
Ou seja, a polpa interior e a parte mais firme do tomate foram percebidos de forma diferente. A polpa foi considerada mais salgada, com maior teor de umami, e mais ácida. A percepção residual destes gostos também seguia a mesma linha. As sensações na boca (um formigueiro, adstringência e viscosidade) também foram sempre superiores para a polpa.
Análises do teor de sal e do pH mostraram valores idênticos (de facto menos sal na polpa interior), que não explicam a diferença sentida pelos provadores. Onde havia grandes diferenças era no teor de compostos responsáveis pelo gosto umami. Os valores para o ácido glutâmico (Glu) e para o monofosfato de adenosina (AMP) eram diferentes nas 14 variedades de tomate analisadas. Contudo, eram sempre muito mais elevados na polpa interior do que na parte firme do tomate. Para o Glu a média era de 4,56 para a polpa interior e 1,26 g/kg para o resto do tomate. Para a AMP os valores na polpa variaram entre 213 e 561 mg/kg e na parte mais firme entre 24 e 196 mg/kg. Estes valores explicam a diferente perceção do gosto umami, e podem também ser uma explicação para a diferença da perceção do teor de sal e acidez, pois os compostos responsáveis pelo gosto umami intensificam a perceção dos sabores.
Quando li tudo isto há uns anos lembrei-me do doce de tomate da minha Mãe e do que me disse, estes estudos demonstravam que ela tinha razão. Também a partir daí sugeri frequentemente aos meus alunos que pusessem um tomate cereja na boca e o apertassem com a língua de forma a sair a polpa interior e sentissem o sabor. E que depois disso mastigassem o resto do tomate e vissem a diferença.
Voltando ao prato que despoletou todas estas memórias e reflexões, e me levou a fazer estas associação à primeira vista improváveis, mas que tinham a sua razão de ser. Os peixes de mar e os mariscos têm normalmente um teor de umami elevado, tal tem como função não os deixar desidratar na água salgada, como já referi num outro post. A cavala é um peixe com um elevado teor de umami, este complementado pelo umami do tomate, tornava o prato delicioso e irresistível.