Petiscos e Miudezas - fazia falta um livro assim!
A fábrica de salsicharia da minha família, como disse há dias, foi fundada em 1908 numa terra onde a energia elétrica só chegou em 1958. Como referi também a atividade era sazonal, e grande parte dos empregados eram de outras terras e trabalhava apenas de inverno. Além do salário, tinham direito também a alojamento e alimentação. Por semana matavam-se no anos 1950 cerca de 60 porcos, para fazer presuntos e enchidos. Mas o porco come-se todo e o que não era usado para os presuntos e salsicharia era usado para as refeições do pessoal e da família.
Numas notas que o meu Pai escreveu diz:
"A miolada era um prato regional, muito apreciado pelos trabalhadores, e servido no jantar do dia da desmancha. Mas a semineta, feita com fígado fresco e cebola, servida ao jantar do dia da matança, era um excelente pitéu.
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Também no dia da matança, e depois de todos os porcos estarem abertos e dependurados era oferecido ao pessoal beiços assados e um copo de vinho
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As matanças tornavam-se assim num dia de convívio e boa disposição."
Lembro-me bem destes tempos, e de ir a casa da minha avó (ligada à fábrica) comer beiços e rabos assados no dia da matança. A miolada, uma açorda de miolos com rim, é um daqueles pratos com que ainda sonho. A semineta sempre foi um prato comum na minha infância, mas também as línguas de porco, a fressura de porco guisada com batatas (a que chamávamos batatas sujas), os rins, o arroz de fressura de cabrito... Nada se deitava fora, tudo se aproveitava, o desperdício zero tão falado agora, era a base da economia doméstica. E a criatividade das mulheres, responsáveis pela cozinha, ao longo dos séculos foi arranjando formas de tornar estas partes, muitas vezes (sem razão) consideradas menos nobres, em pratos deliciosos e ricos de sabores e texturas. Pratos que adoro!
Assim, é com grande agrado, e mesmo com alguma nostalgia, que vejo o livro "Petiscos e Miudezas à Portuguesa" de Isabel Zibaia Rafael e Virgílio Nogueiro Gomes. Dividido em capítulos sobre os vários animais (Aves, Bovinos, Caprinos e Ovinos, e Suínos), em cada um deles há receitas, umas mais tradicionais e outras mais atuais, em que os protagonistas principais são as miudezas destes animais. Mais do que isso, em cada capítulo há uma introdução, sobre o referido animal, incluindo curiosidades e referências históricas, e também é dada informação sobre aqueles qualificados e protegidos por normas e designações da União Europeia (DOP e IGP).
Curiosamente recentemente Michel Roux publicou um livro sobre o mesmo tema "Les Abats: Recipes celebrating the whole beast" e há algumas semanas li uma entrevista com ele em que lhe perguntavam, se numa altura em que a tendência é para se reduzir o consumo de carne, se fazia sentido um livro assim. Ele respondeu que precisamente por isso fazia sentido, que por questões de sustentabilidade se tem mesmo que reduzir o consumo de carne, e portanto faz todo o sentido que, já que se mata o animal, que se comam todas as suas parte. Que é uma questão até de respeito pelo animal. Que isto fazia parte da sua cultura e educação.
Precisamente por estas razões, e também porque muitas das receitas me fazem crescer água na boca e me despertam recordações, gostei muito do livro da Isabel e do Virgílio.
Fazia falta um livro assim!