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19
Set22

Hungry - a "fome" de descobrir outros mundos

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Trabalhar significa muitas horas a ler - trabalhos, teses, artigos... por vezes torna-se difícil nos tempos livres sentar-me a ler.  Nos últimos meses tenho conseguido fazê-lo mais, e estas férias foram boas desse ponto de vista. Um dos livros que li foi o Hungry de Grace Dent, crítica de restaurantes do The Guardian, com alguns programas de rádio e autora de vários livros,  e uma personalidade importante no mundo da gastronomia no Reino Unido.

Um livro autobiográfico, sobre comida, classes sociais e relações familiares. Transmite uma sensação de sinceridade, mas sobretudo é um livro engraçado, incisivo, comovente e inspirador. Grace Dent cresceu numa família de classe operária, em Currock, subúrbio de Carlisle no norte de Inglaterra. O livro cobre um percurso de quase 40 anos, 20 dos quais a trabalhar em comunicação social (Marie Claire, Cosmopolitan, Independent, The Guardian... ). Um percurso onde existe um mundo de distância entre as suas experiências de infância e o meio em que se move agora em Londres, em particular no que diz respeito à sua relação com a comida. Diria que o título se aplica à sua "fome" de conhecer mais e melhor, de descobrir outros mundos. Algo que ela descreve muito bem neste excerto do livro:

 

No dia seguinte à elegante refeição de aniversário, sentei-me nos campos em Currock, perto do caminho de ferro, perto dos cavalos dos ciganos, comendo ovos em conserva de um saco de papel. Não sabia como poderia passar de um lugar para outro, mas sabia que um dia, tal como a tia Frieda, eu queria entrar em restaurantes e sentir o caos invisível que havia causado. E quando o fizesse, fazia-o com os ombros para trás, o queixo inclinado para cima e o sussurro dos meus passos. Iria enganar completamente todos, mostrando que ali, sim, exatamente ali, era onde eu deveria estar.

 

Houve uma parte do livro que achei deliciosa. Apesar de escrever sobre gastronomia, durante muito tempo os convites para eventos relacionados com vinho deixavam-na sempre insegura. Um dia, no início da carreira, recebeu um convite para uma viagem a Paris para celebrar a abertura de uma garrafeira. A viagem incluía uma estadia de uma noite no hotel George V e achou que era imperdível. Mas estar no meio de um grupo de especialistas em vinho não era confortável. Numa refeição, a certa altura, o sommelier pediu-lhe que escolhesse o vinho para a mesa, e o que ela aprendeu em poucos minutos foi-lhe muito útil. Não resisto a transcrever o excerto do livro onde o descreve. E quem sabe não poderá ser útil a outros... Quem nunca se sentiu desconfortável numa situação semelhante?  

 

"Madame", disse o sommelier, "gostaria de escolher um vinho para a mesa?"

Ele erguia um livro grosso de capa dura.

"Ughghghghtenhomesmoqueescolher?” Disse eu.

"Desculpe?", disse ele inclinando-se para ouvir.

A mesa inteira parou de falar. Todos olharam para mim.

Felizmente, neste ponto, surgiu um herói que me salvou.

"Eu vejo isso", disse Hector, com uma piscadela.

"Senhor," o sommelier acenou com a cabeça, entregando-lhe a carta de vinhos.

"Então, em que estamos a pensar... o que vamos comer" disse Hector casualmente, como se não falasse com ninguém em particular, e num piscar de olhos o sommelier ganhou vida, falando sobre as garrafas que havia tomado a liberdade de "pôr a respirar" e outras raras que esperava que tivéssemos a gentileza de provar.

"Então, não gosta de escolher vinho?" disse Hector baixinho depois do sommelier se ter afastado.

Optei por fazer jogo limpo. Não tinha nada a perder. Não sabia absolutamente nada sobre vinho. Só tinha ido naquela viagem para passar uma noite num hotel fino em Paris e para repor o stock de rímel na loja grande da Sephora. Agradeci a Hector por intervir antes de tentar escolher um tinto acessível, pedir por engano algo raro no valor de 10.000 francos e ter o passaporte confiscado pela gendarmerie.

"Bem, diga ao sommelier quando ele chegar que não quer gastar muito e pergunte o que ele recomenda." Hector riu.

"Mas aí ele vai querer falar comigo", corei.

"Ah, ele não quer falar consigo", disse Hector. "Ele quer falar para si. É apenas um jogo. O trabalho do sommelier é saber tudo sobre as garrafas da carta. O seu trabalho é bebê-las. Uma tática vencedora", continuou ele, "é parecer genuinamente interessada quando ele falar. É realmente simples."

“Mas... e quando eles me dão a provar?" disse eu. "O que digo?"

"Mais uma vez, muito pouco", disse ele.

Ele imitou o ato de pegar o copo pela haste, olhar por um segundo para a cor, enfiar o nariz no copo para uma pequena cheiradela e deixar uma pequena quantidade entrar na boca.

"Bom", disse ele.

"É tudo o que eu digo? Bom", perguntei eu.

"Bem, você não está a avaliar o sabor, está a verificar se está estragado, o que não vai acontecer", disse ele. Fiquei com  cabeça a andar à roda.

"OK, mas e se eu vir a carta e for tudo muito caro?" perguntei. "O que é que digo?"

"Oh... OK, aqui está o que eu faria", disse ele. Chamou o sommelier de uma forma muito blasé.

"A propósito, quais são os vinhos da casa? Para o caso de ser uma longa noite", disse ele. "São bebíveis?"

Essa pergunta foi milagrosa.

Hector estava a dizer "queremos a garrafa mais barata que tiver", mas em vez do sommelier troçar de nós, ele começou a justificar porque razão esses vinhos eram as escolhas mais inteligentes da lista - eram as suas escolhas pessoais. Tão versáteis, tão acessíveis. Ele e sua equipe bebiam-nos depois do trabalho.

"Mais tarde, queremos dois de cada", disse Hector.

Aprendi o suficiente sobre vinho em onze curtos minutos para me preparar para uma vida inteira.

Semanas depois, escolhi o vinho para toda a mesa no The Ritz Carlton, em Montreal, numa viagem com o filho de um proeminente parlamentar conservador e o irmão extremamente chique de uma atraente jovem de Nova York que tinha um daqueles segundos nomes que fazem a conversa parar e as pessoas inclinarem-se.

 

 

Nota: A tradução dos dois excertos são minhas, dei o meu melhor... mas pode não ser suficiente para uma boa tradução.

 

 

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