Estrella Damm Gastronomy Congress - Parte 2
De tarde decorreram mais três apresentações, a primeira foi de João Rodrigues, do restaurante Feitoria. Começou com questões, que serviram de tema aos pratos posteriormente apresentados, nomeadamente: O que é evoluir na cozinha portuguesa? Como se transmitem as características da cozinha portuguesa a pessoas que não a conhecem?
João Rodrigues falou ainda da importância da união e diálogo entre os chefes, para dar a conhecer a cozinha portuguesa e se poder evoluir. Mas também porque permitiria atingir uma escala que tornaria mais fácil conseguir o suporte de investigação científica e cientistas ao seu trabalho. E ainda permitiria um trabalho mais consistente com os produtores nacionais, de forma a disponibilizarem produtos específicos e manterem uma regularidade no fornecimento.
Também ele referiu que a cozinha de cada chefe reflete a sua personalidade, e que é preciso liberdade para a exprimir. Falou da tendência atual dos chefes terem os seus próprios restaurantes, o que de certa forma permite que o conceito em que se baseia o seu trabalho se reflita não só na cozinha, mas em todo o ambiente e seus detalhes.
Reforçou um aspeto que já tinha sido focado de manhã, nomeadamente que a evolução só se atinge com a experimentação, e que esta implica tentativa e erro. Que é importante arriscar.
Quanto à tradição, referiu que esta tem que ser dinâmica, não pode ser vista como algo sagrado e intocável. Disse que tem refletido muito sobre este aspeto e sobre como se pode inovar na cozinha portuguesa, como se pode transmitir a cozinha portuguesa. Apresentou três pratos resultantes deste trabalho.
Um deles, baseado no Bacalhau à Braz, mas com todos os elementos colocados em separado, e participando o cliente na execução, ao finalizar o prato na mesa. Neste prato o bacalhau é substituído por um estufado de sames e línguas de bacalhau, a gemas previamente cozinhadas a baixa temperatura e depois envolvidas com azeitona desidratada e pulverizada. O cliente a partir da desconstrução que lhe é apresentada, constrói o prato. Em paralelo fizeram o Bacalhau à Braz tradicional e no final mostraram que os pratos tinham um aspeto muito semelhante.
O segundo prato, com uma grande componente vegetal, era inspirado na matança do porco, que vivenciou na terra do seu Pai. Quando é servido, chega também uma brasa, sobre a qual deitam umas gotas de gordura de porco, de forma ao cheiro sugerir essa ligação. O prato seguinte era inspirado pela região de Alcácer do Sal, composto por vários bivalves, caules de junco cortados de forma a simular arroz e envolvidos com um molho cremoso obtido pela cozedura de arroz carolino dessa região.
O último prato apresentado era baseado no Cozido à Portuguesa, um prato que simboliza Portugal. Neste fez uma terrina com cabeça de porco e vários enchido cortada com a forma do nosso país. Esta é servida com farinheira envolvida pela couve, e cremes de cenoura, feijão e nabo.
Seguiu-se Henrique Sá Pessoa, que fez a sua apresentação com a colaboração de Pedro Bastros da Nutrifresco, com quem tem feito trabalho de pesquisa sobre os peixes da nossa costa para a criação do menu Costa a Costa do seu restaurante Alma, menu este que apenas tem pratos de peixe. Trouxeram uma variedade de peixes e mariscos do Açores, entre eles as tão pouco conhecidas cracas (na foto). Como também são relativamente desconhecidos muitos dos peixes apresentados e que, segundo a legislação daquele arquipélago, têm que ser pescados à linha.
A muitas das espécies apresentadas foi conferida uma certificação internacional (Friends of the Sea ou Dolphin Safe) o que é garantia de sustentabilidade. Para alguns destes peixes o fornecimento é necessariamente irregular, como é o caso da escamuda que vive a 1200 m de profundidade e há apenas 4 ou 5 barcos que a pescam.
Henrique Sá Pessoa apresentou um prato em que juntou vários destes mariscos (percebes, mexilhão e cracas), cavala e cavala da India (wahoo), um peixe gordo pouco comum, com um puré de ananás dos Açores assado no sal. Penso que o seu objetivo, mais do que dar a conhecer a sua cozinha, foi o de dar a conhecer os nossos produtos e a sua riqueza aos seus colegas espanhóis (e a muitos dos portugueses na audiência).
Finalmente foi a vez do chefe que talvez mais interesse atraía do público ali presente - Albert Adrià. Devo dizer que foi a apresentação que achei menos interessante. Opinião esta que possivelmente não é a de muitos dos presentes. A apresentação começou discutindo o que era tradição, e para isso deu exemplos (um bocado fora de contexto e drásticos demais, se comparados com tradição em cozinha) de coisas que foram / têm sido tradição como escravatura, fome, racismo, violência de género. Concluiu que a tradição pode e deve evoluir. Relativamente à cozinha deu exemplos de vários produtos que surgiram nos últimos anos em Espanha (e Portugal) como o abacate e o salmão. Assim como referiu várias cozinhas: a da sobre-cozedura, a do narcisismo, a da ditadura… Concluiu dizendo que há que acabar com a cozinha do imobilismo e da intolerância.
Dos seus restaurantes, centrou-se sobretudo no Tickets, mas no final, no debate, ressalvou que não foi ali apresentar a cozinha dele, mas a do Tickets, a dele será a de um novo restaurante, Enigma, a abrir em breve.
Falou da evolução do Tickets, que inicialmente tinha pratos mais tradicionais, mas esses passaram para um outro restaurante que tem do outro lado da rua, o Bodega. A partir de 2013 a oferta do Tickets passou a ser mais vanguardista e com um conceito em que se come com as mãos e se partilha.
Apresentou alguns pratos, pequenas tapas, na generalidade muito simples – num deles carne crua, temperada com mostarda pimenta ovo e azeite sobre um qualquer pão. Em situações mais elaboradas não sabia fazer / descrever completamente, tinha que perguntar ao cozinheiro que veio com ele. Referiu / criticou uma cozinha mais elaborada, a que chama a cozinha de “mise en place”, como algo que demora muitos dias.
Disse que podia falar o dia inteiro, mas que com o tempo disponível era o que podia ensinar. A postura foi sempre de que estava a ensinar, e não a partilhar alguma coisa, a aprender também.
Referiu que criatividade é um estado de alma, e não um tipo de cozinha, mas também associou criatividade a “ money, money, money”. Falou da equipa criativa do El Bulli e do espaço para isso (mas tanto quanto sei não começou assim, começou com poucos meios e foi crescendo, porque o estado de alma estava lá). E disse, com muita razão, que não se pode revolucionar a cozinha de 3 em 3 anos.
Não consegui criar empatia, não achei o discurso claro, nem os pratos apresentados particularmente interessantes. Achei que a forma como falava dos restaurantes transmitia que a aproximação era essencialmente comercial e não algo com alma, com a alma dele. Achei que em geral a postura revelava alguma arrogância: na falta de preparação da apresentação, em muita coisa que disse, e também quando referiu os nomes dos colegas espanhóis, mas não dos portugueses que com eles partilharam o palco, ou quando disse que tinha comido na véspera no Belcanto um prato muito bom, mas já não se lembrava do que era...
O congresso terminou com um tempo de debate, moderado pelo Miguel Pires, que fez também a apresentação e moderação das várias sessões.
Valeu muito a pena ter ido, gostei bastante. Não é normal em Portugal ver 400 pessoas ligadas à gastronomia a assistir a eventos destes. Que venham mais…
Contudo, esta reunião ocorreu cerca de 1 semana antes do Congresso Nacional de Cozinheiros, de que a Estrella Damm é um dos patrocinadores. Com 365 dias no ano, porquê tão perto um do outro, ainda mais tendo em conta que alguns dos chefes portugueses participavam em ambos os eventos? Que venham mais, mas que este aspecto seja considerado. E já agora, se me permitem, que um outro aspecto seja também considerado, no livrinho que distribuíram, com uma receita de cada chefe, há coisas que não se entendem, outras têm erros de tradução. Uma boa revisão do texto não ia tornar mais caro um evento desta envergadura.