As Argolas da Maria José
Não sei há quantos anos não comia as Argolas da Maria José, há muitas décadas certamente. Nem me lembro bem da Maria José que as fazia, e por isso elas surgem com o nome dela no livro de receitas da minha Mãe, mas lembro-me de as fazer em criança. Mal chegava à bancada da cozinha, mas recordo-me perfeitamente das bolinhas de massa, de meter o dedo no meio e rodar para fazer a argola. Lembro-me de as ver fritar. Lembro-me sobretudo de as comer. Para além dos Borrachões, os biscoitos que me lembro de comer em criança eram as Argolas da Maria José e os Lagartos. Esta semana foi altura de revisitar as Argolas da Maria José. A foto, tirada apenas para mandar às minhas irmãs para ver se sabiam o que era, não está grande coisa, mas a vida real é assim, nem tudo tem que ser perfeito. Souberam-me tão bem quanto me lembrava, e isso foi o mais importante.
Olhei para a receita... o líquido adicionado era (de novo) aguardente! As Argolas com menos quantidade dela do que os Borrachões. Antes assim! Concluí que me alimentavam a biscoitos de aguardente. Imaginei-me a questionar os meus Pais sobre isso. Acho que me diriam qualquer coisa como "O ponto de ebulição do álcool é 78ºC, já não está lá nada". Alguma coisa estaria, mas não chegava para intoxicar ninguém.
Porquê aguardente? Foi o que me perguntei a seguir. Lembrei-me do famoso polme dos Fish & Chips do Heston Blumenthal. No livro A Cozinha é um Laboratório, que a Margarida Guerreiro e eu escrevemos, tínhamos falado deste polme. Já não me lembrava o que tínhamos dito e, como tem acontecido muitas vezes nos últimos 11 anos, voltei ao livro. Penso sempre que foi bom tê-lo escrito, foi bom ter registado tanta coisa que de tempo a tempo preciso rever e ali está. Dávamos duas razões para o uso da vodka no polme - evitar a formação do glúten e o evaporar rapidamente, portanto a crosta ficar mais leve e seca.
Quando como Borrachões, para além do sabor, gosto da textura - seca, crocante, sem ser muito densa. As Argolas têm uma textura parecida. Um pouco "folhada" (não é de todo um folhado, não sei, talvez aquilo que os ingleses chamam flaky e que não sei traduzir). Pensei que a causa de textura era do álcool, da aguardente e do vinho branco. Evitava a formação de glúten, evaporava mais facilmente e, além de sair e deixar o biscoito seco, também separava camadas de massa ficando o biscoito menos denso, com aquela textura em que sempre reparava.
Pesquisei no Google Académico para tentar encontrar algum artigo que falasse nisso. Não encontrei. Fui buscar uns livros e encontrei apenas uma breve referência ao álcool dificultar a formação do glúten. Pouca coisa.
Googlei um pouco...
"Beyond flavor, alcohol can also affect the texture of your baked goods. Adding a splash of vodka into pie dough can help create a super flaky dough—unlike water, vodka doesn't develop as much gluten in the pie dough. The same goes with tart and shortbread dough—for flaky results, add in a splash of vodka." Dizia o artigo "The Boozy Ingredient Your Baked Goods Are Missing" no site Epicurious (os americanos são brilhantes a falar de cozinha, melhores que ninguém, muito aprendi com eles ao longo da vida).
Um outro artigo, no blog da Scientifc American, "How Alcohol Maskes a Flakier Pie Crust: The "Proof" is in the Pie" dizia:
"The final ingredient to consider is the liquid. This could be water, though some use milk or even vinegar. And, of course, there’s always vodka as an option. Say whaaaaat?
....
The vodka rationale isn’t to intoxicate your pie--it has to do with gluten. Liquids are essential to pie crusts because they bind the dough together; however, they can present challenges. When liquids are added to flour, two wheat flour proteins--gliadin and glutenin--form gluten, which can toughen the dough. So how do you bind fat and flour together but avoid gluten formation? The trick appears to be using a hard liquor such as vodka--since 80 proof vodka is only 60% water, it combines the dough but doesn’t contribute to gluten formation."
Todos concordavam na influência do álcool na textura, por evitar a formação de glúten. Eu acho que o baixo ponto de ebulição, que o faz evaporar rapidamente, também é importante. Interessante seria saber quem se lembrou primeiro de usar a aguardente nos Borrachões e nas Argolas, ambos biscoitos da Beira Baixa. As mulheres que os criaram não podiam googlar e descobrir tudo aquilo que disse... Porquê a aguardente? É sempre interessante ver que esta evolução empírica tem frequentemente uma explicação mais aprofundada, e que acaba por ocorrer da mesma forma em lugares distantes.
Também me intrigou a forma de cozer as Argolas, fritando-as. Acredito que fosse mais acessível do que acender um forno que exigiria mais lenha, um método mais caro e trabalhoso, um tipo de equipamento que nem todos teriam.
Todo este processo e pensamentos entretiveram-me algumas horas numa tarde de sábado. No final apeteceu-me uma Argola da Maria José. Nada feito... já tinham acabado há uns dias, mas estas questões que andavam na minha cabeça prolongaram o prazer de comer as Argolas..