A multidimensionalidade do que comemos - do biológico ao cultural, do individual ao coletivo
Recentemente li o artigo Food, Self and Identity de Claude Fisher, em que ele discute a enorme complexidade da nossa relação com a comida. Uma relação que tem um carácter multidimensional - comportamental e cognitivo, psicológico e cultural, individual e coletivo. Ele refere que a forma como um dado grupo come ajuda a afirmar a sua diversidade, hierarquia e organização e, ao mesmo tempo, tanto a sua unicidade quanto a alteridade de quem come de forma diferente. A comida também é central para a identidade individual, pois qualquer indivíduo é construído, biológica, psicológica e socialmente pelos alimentos que escolhe consumir.
Claude Fischer constata que a forma como se transformam os alimentos não é exclusivamente de natureza material, já que uma culinária também opera no registo da imaginação. Consequentemente, constitui uma ponte entre Natureza e Cultura. A comida e a culinária são assim um elemento central na perceção de pertencimento coletivo. Tanto que em situações de migração se observou que certas características da culinária são às vezes retidas mesmo quando a própria língua foi esquecida.
Ao ler o artigo lembrei-me que quando no Natal toda a família está reunida, no jantar de dia 24 normalmente comemos bacalhau assado em forno de lenha, com batata assadas, couves e grão. Há alguns elementos da família que são vegetarianos, ou mesmo veganos, e fazem questão de comer algo muito semelhante. Portanto comem um tofu marinado com alho e algas, e em que é usada alga nori para dar um aspeto idêntico ao da posta de bacalhau com a pele. Entre os vários tabuleiros que vão para o forno (somos quase 30) há um idêntico, mas com o tofu em vez de bacalhau. Uma refeição destas é uma ocasião de comunhão, inclusão e partilha. O facto de comerem algo idêntico contribui para que se sintam integrados nos rituais gastronómicos da época, e reforça o sentimento de pertença.
Aliás, Claude Fischer diz, embora num outro contexto, que a novidade, o desconhecido, pode ser integrado na tradição e desta forma a originalidade é moderada pela familiaridade e a monotonia aliviada pela variedade. E, citando outros autores (E. e P. Rozin), diz ainda que "princípios do sabor", certos complexos olfativos e gustativos típicos de uma determinada culinária, podem funcionar como marcadores, tornando um prato reconhecível e, portanto, aceitável mesmo que alguns dos outros ingredientes sejam estranhos ao sistema. Dado que, em muitas sociedades e culturas, recusar comida oferecida equivale a rejeitar o relacionamento, a afastar-se do grupo, esta pode ser uma via de inclusão.
Lembrei-me também de um almoço recente, com a minha filha que é vegana, no restaurante A Minha Avó em Lisboa. Um restaurante 100% vegano mas em que os pratos e os sabores são muito portugueses, muito baseados na "cozinha da Avó". Mudar a forma de alimentação, rejeitando determinados alimentos, não tem que implicar uma rejeição da cultura do grupo a que se pertence e em particular da sua cultura alimentar e aqui a culinária, e o engenho e arte de quem cria os pratos, desempenham um papel fundamental. No A Minha Avó fazem-no de forma brilhante!
Estaladiços de “alheira” e espinafres
(feitos de soja e tofu)
Peixinhos da horta
(cozinhado num caldo feito com algas e com cogumelos eryngii e shimeji)