Marmalade, um doce (para adultos) de que tem que se aprender a gostar
Quando me perguntam se com a torrada que pedi para o pequeno almoço quero "jam or marmalade?", em geral peço marmalade, porque em Roma se deve ser romano... Mas há dias em que para amargo já basta o de alguns acontecimentos que não podemos controlar, nesses dias preciso de algo mais suave, e fico-me por um doce de morango ou framboesa.
A palavra marmalade, lembra a nossa marmelada, e o que tenho lido é mais ou menos unânime atribuindo a esta a origem da palavra inglesa. No entanto, são bem diferentes, a marmelada é um delicioso doce sólido de marmelo, a marmalade é um doce de laranja amarga, tipo geleia espessa mas, em geral, com pedaços de casca da laranja em suspensão. Será também delicioso para alguns mas, talvez por não ser da minha criação, ainda estou a aprender a achá-lo delicioso. Para já é uma experiência interessante, é exótico, e algo que me apetece entender e descobrir melhor.
Mas voltando ao nome, dizem que há registos, do final do século XV, da chegada a Inglaterra e à Escócia de caixas de marmelada portuguesa. Diz-se até que nessa época seriam atribuídas ao marmelo propriedades curativas e seria até consumida como medicamento. Começou então a ser feito no século XVII um produto semelhante, mas usando laranjas, com uma consistência sólida, idêntica à da marmelada. Penso que não exclusivamente com laranjas amargas. Diz-se que no final do século XVIII James Keiller comprou um carregamento de laranjas de um navio português que se tinha abrigado de um temporal no porto de Dundee, na Escócia, e que as estava a vender a um preço baixo. Aparentemente, só depois de as ter comprado se apercebeu de que eram laranjas demasiado amargas e não dava para serem comidas como fruta. Deu-as à sua mãe que as transformou em doce, e possivelmente foi ela que inovou e introduziu a marmalade com uma consistência diferente, que permitia ser barrada.
Por essa época o que se comia ao pequeno almoço estava a sofrer alterações, em vez de ser uma caneca de cerveja com uma torrada a boiar, com a introdução recente do chá em Inglaterra e na Escócia, cada vez era mais popular um chá com uma torrada e, entre outras coisas, a marmalade começou a ser usada para barrar as torradas e a ser cada vez mais consumida. Assim, a família Keiller acabou por ser a primeira a produzir industrialmente e comercializar a marmalade, na sua fábrica de Dundee. Negócio este que cresceu e se estendeu para outras zonas, sendo na segunda metade do século XIX os maiores produtores mundiais de marmalade. Estima-se que em meados do século XIX produzissem cerca 1,5 milhões de potes de marmalade Keiller por ano. As empresas Keiller fecharam por volta de 1992, havendo outros produtores, e sendo um doce popular noutros países para além do Reino Unido, como é o caso, por exemplo, dos EUA, Escandinávia, Alemanha, Japão e Índia.
Não me parece que seja um doce muito apreciado por crianças, é amargo demais e, de facto, dizem que o seu consumo está em declínio, sobretudo entre os jovens. Quando questionado (por Felicity Cloake para o seu livro Red Sauce Brown Sauce - A British Breakfast Odyssey), sobre este assunto, Martin Grant da empresa Mackays, uma das principais empresas produtoras de marmalade, diz que não é objetivo deles atrair consumidores entre a população jovem, que quando o gosto se começa a desenvolver e a amadurecer e se começa a apreciar vinho, café e queijo, então aí está-se preparado para apreciar marmalade e se tornam fãs para toda a vida. Também desenvolvem as suas próprias preferências, pois o pedaços de casca de laranja em suspensão na geleia, podem ir desde pequenas partículas da casca moída até fatias mais ou menos espessas. Há umas marmalades mais ou menos inofensivas, outras têm uma personalidade mais forte, direi até mais amarga.
O principais ingredientes são os mesmos para todas as marmalades, laranjas (em geral) amargas, açúcar, água, e um pouco de sumo de limão para que o pH seja adequado para que a pectina das laranjas (e da que é por vezes adicionada) desempenhe o seu papel na perfeição, para além da técnica e sensibilidade de quem a produz. Contudo, a algumas são adicionados outros produtos que as aromatizam, whisky, rum, champanhe ou especiarias são comuns. Estas versões são sobretudo preferidas por pessoas para quem o consumo de marmalade não é um hábito bem estabelecido. O meu caso...
Há algum tempo que compro a marmalade que consumo de uma produção artesanal da zona onde vivo, a Springfield Kitchen. Uma pequena empresa de um casal, que em 2004 começou a cultivar o seu novo jardim, e dado que a produção de vegetais e frutas começou a ser elevada, ofereciam a vizinhos e amigos, mas em 2013 decidiram fazer doces e chutneys para uma feira de Natal e a partir daí aumentou a produção. Vendem sobretudo em feiras e em pequenas lojas independentes.
Gosto muito da Seville Orange Marmalade with Cardamom & Saffron, uma ideia dada por uma companheira de viagem, originária de Mumbai (Bombaim), numa visita que fizeram a Goa em 2023. Tem um sabor exótico, complexo e sofisticado.
Como por vezes não está disponível, alterno-a com a Spiced Orange Marmalade with Rum, que já tinha acabado qundo me lembrei de a fotografar.
Provo-as sempre com a torrada com manteiga e marmalade, ou apenas com marmalade, para confirmar o que Heston Blumenthal refere na introdução da receita Sardines on Toast Sorbet (um prato excelente e que me deixou memórias inesquecíveis) do seu livro The Fat Duck Cookbook, em que diz que a marmalade de laranja que contém pedaços de fruta se for servida em tostas sem manteiga tem um sabor mais forte do que se as tostas forem barradas antes com manteiga. Confirmo sempre, e noto-o não só relativamente ao sabor a laranja, mas também ao das especiarias.
Estas diferenças culturais relacionadas com o consumo de alimentos são verdadeiramente interessantes. E embora haja evoluções, estou firmemente convencida que a tradição ainda tem um peso muito grande no consumo em cada região. No entanto, as alterações climáticas também vão ter um papel importante na mudança dos hábitos de consumo. Por exemplo, no caso das laranjas amargas, as laranjas de Sevilha de agricultura biológica poderão caminhar para a extinção no próximo século se o número de explorações agrícolas continuar a desaparecer, as alterações climáticas afectarem as culturas, e as doenças dizimarem as árvores.
1ª Foto DAQUI