Não se vive só da tradição (pelo menos eu não vivo), dizia eu há poucos dias. Mas a tradição é importante, e é fundamental preservá-la. Há meia dúzia de anos, num outro post neste blog, dizia que faziam falta bons restaurantes, onde se comesse a comida portuguesa que resultou da evolução ao longo dos tempos, sem twists ou re-interpretações, bem tradicional e bem confecionada.
Esta foi uma das razões que me despertou o interesse em ir ao Pica-Pau, quando soube da sua abertura e li um artigo em que o Luís Gaspar, cuja qualidade do trabalho conheço de outros restaurantes, dizia:
O Pica-Pau é um restaurante que se assume como cozinha tradicional portuguesa sem qualquer tipo de intervenção ou criatividade. Aqui não há interpretação do chef. O que há é respeito pelo património gastronómico nacional e pelos pequenos produtores.
Há tanto tempo que sentia a falta de restaurantes com estas características, mas em que as técnicas fossem otimizadas para melhorar os resultados. O Pica-Pau ficou num lugar alto na minha lista de restaurantes a visitar, mas andámos desencontrados durante algum tempo. Finalmente, há algumas semanas, consegui lá ir almoçar. Fiquei na sala interior, bastante agradável, mas invejei as mesas na esplanada... Fica para uma próxima oportunidade. Ao longo do almoço o restaurante foi enchendo. Tanto quanto me apercebi a maior parte dos clientes naquele dia eram portugueses.
Empadas de Perdiz
Salada de Polvo com Pimentos Assados e Coentros
Filetes de Pescada com Arroz de Tomate
Farófia com Leite Creme
O que comi, correspondia fielmente ao que me "tinha sido prometido". Cozinha tradicional, muito bem confecionada. Era exatamente o tipo de restaurante de que sentia a falta.
A abordagem seguida no Pica Pau, fez-me lembrar um artigo muito interessante, em que são caracterizadas as expetativas dos clientes que vão a um restaurante de cozinha tradicional e a um restaurante de cozinha criativa da seguinte forma:
O cliente num restaurante que serve comida tradicional espera que o chef lhe prepare uma refeição que satisfaça certas expetativas pré-definidas. É o cliente quem ordena; ele pede ativamente uma determinada refeição e espera que ela esteja em conformidade com essas expetativas – se não estiver, pode reclamar. Por outro lado, o cliente de um restaurante que aposta numa cozinha inovadora espera ser desafiado e entretido, com uma refeição centrada em novas experiências sensoriais.
A forma como, no site do Pica-Pau, caracterizam a cozinha oferecida, está em absoluta concordância com as expetativas dos clientes de um restaurante de cozinha tradicional:
Somos paragem obrigatória para os amantes da cozinha tradicional portuguesa. Os Pratos do Dia, os Petiscos, e os Pratos Principais enaltecem os receituários familiares de norte a sul, e deixam quem nos visita a perguntar-se se teremos consultado o livro de receitas lá de casa.
Curiosamente, quem comigo almoçou, ao comer as farófias disse "São tão boas como as que o meu Pai fazia". Eu sei que, para essa pessoa, não há maior elogio para umas farófias.
Acho fantástico o Luís Gaspar ter resistido à tentação de introduzir algum twist, e de apenas ter otimizado técnicas. Raros são o chefs que o fazem. Mas, de facto, como ele refere:
O meu único papel aqui foi pegar nos bons produtos e aplicar boa técnica, mais contemporânea e mais cientifica, ao receituário tradicional.
O que me levou a lembrar também o artigo acima referido, em que dizem:
A componente técnica refere-se ao artesanato (repetição, tradição, trabalho bem executado), enquanto a componente arte se refere a aspetos mais criativos (inovação, criatividade, expressão da beleza). Enfatizamos que o artesanato também beneficia de uma melhor compreensão físico-química dos processos culinários.
Há, contudo dois aspetos que teria gostado que fossem um pouco diferentes... Sem de forma nenhuma desmerecer o trabalho feito, que é excelente, acho que se justificava pensarem neles.
Um dos apetos, é o tipo de chá servido. No final pedi um chá e veio um feito com um saquinho da Tetley, o que já me aconteceu em vários outros restaurantes aos quais os comentários que vou fazer também se aplicam (intrigava-me que fosse sempre Tetley o chá, recentemente tomei consciência de que é distribuído pela Delta, e portanto vai com o café). Nós somos um dos únicos países da Europa a cultivar chá, e penso que aquele que o produz em maior quantidade. Seria bem mais interessante que restaurantes que pretendem ser uma montra dos produtos portugueses de qualidade, servissem chás produzidos em Portugal, e há vários...
Mais que isso, que ao fazer um chá usassem uma técnica de preparação correta. É que é mesmo importante, e isso não é minimamente valorizado. Embora não tenha acontecido nesta refeição que descrevi, há uns meses pedi um chá verde num hotel de luxo em Lisboa, e o chá que me chegou era absolutamente intragável de amargo que estava. Quando o responsável pela sala veio à mesa perguntar se estava tudo bem, disse-lhe que tudo estava ótimo, exceto o chá. Disse-lhe que certamente tinha sido feito com uma água a uma temperatura superior ao 65-80º que deveriam ser usados para um chá verde e que devia ter estado demasiado tempo em infusão, bem mais que os 2 a 3 minutos. A resposta foi basicamente que têm muito trabalho e não têm tempo para esses detalhes... Como tudo o resto era muito cuidado e com grande qualidade, só posso concluir que não valorizam minimamente o chá.
O segundo aspeto que gostava de referir está relacionado com a composição da carta. Tudo o que lá está foi muito bem selecionado, mas é importante que os restaurantes comecem a ter a preocupação de ser mais inclusivos e de ter opções para quem não consome produtos de origem animal. Sem sair da nossa cozinha tradicional, há tanto que se pode fazer...
Já nem é só ser inclusivo, cada vez se ouve falar mais em sustentabilidade, em alterações climáticas... um passo importante a dar para reduzir o impacto do que comemos, é os restaurantes começarem gradualmente a introduzir mais opções vegetarianas e veganas.
Vou voltar logo que possível ao Pica-Pau, há na carta muitas outras coisas que gostava de comer, e é o tipo de restaurante de que há muito sentia falta e onde servem uma excelente comida conforto.
Pica-Pau - Rua da Escola Politécnica, 27 - Lisboa