Fogo - o final foi inesperado...
Vou começar pelo fim... por uma situação que nem sequer é habitual ser referida. Acabámos de jantar, pagámos e antes de sair fui à casa de banho. Entro e oiço um poema a ser declamado. Não me lembro que parte ouvi quando entrei, mas reconheci-o de imediato e passados breves instantes ouvi o início:
“Vem por aqui” — dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui”!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…
Fiquei por ali a ouvir o Cântico Negro do José Régio dito pelo João Villaret. Fui dizendo os versos ao mesmo tempo. Tive uma professora de português fantástica entre os 10 e o 15 anos. Só bem mais tarde percebi muita coisa e a sorte de a ter tido com professora. Foi ela que nos introduziu alguns escritores e poemas, entre eles este. Sei lá... devia ter uns 14 anos, uma idade de uma certa rebeldia, decorei-o, muitas vezes o repetia. Fiquei ali encostada a sorrir, a lembrar-me disso, e de que a rebeldia afinal não era assim tanta...
O restaurante era o Fogo, do Alexandre Silva. Posteriormente também pensei na razão da escolha do Cântico Negro para a casa de banho. De certa forma esta moda de cozinhar com fogo pode ser associada a alguma rebeldia, tem algo de aventura, heróico, teatral... quem sabe esteja aí alguma relação.
Falando da moda de cozinhar com fogo, tenho que reconhecer que não me suscita grande simpatia. Às imagens de regresso às origens, natural e romantismo associadas, e que intuitivamente passam, sobreponho imagens de poluição ambiental, pouca eficiência energética, elevado risco e falta de sustentabilidade. Tudo isto é muito complexo e, curiosamente, tenho procurado informação, e ainda não encontrei nada de sério. Gostava mesmo de um dia ver uma análise aprofundada dos efeitos em cozinhas de restaurantes de fine dining, com os equipamentos de cozinha e extração que usam, que penso que devem ter alguma sofisticação e otimização para reduzir riscos, melhorar o processo de combustão e a transferência de calor. Estudos há muitos, mas sobre cozinha familiar de quem não tem acesso a outras formas mais saudáveis de preparar os alimentos. Tanto se falou de cozinha molecular e dos efeitos nefastos, e tenho sempre a sensação de que é uma brincadeira ao lado do que é cozinhar com fogo de lenha.
Apesar de tudo isto, na vida não podemos fazer só o que é isento de riscos, e consigo compreender que possa ser um estímulo interessante para alguns chefes e que, com um grande investimento, se consigam minimizar os efeitos negativos. Cozinhar com fogo permite introduzir sabores e aromas próprios agradáveis. Além disso, conseguir uma certa delicadeza de sabores em várias preparações é um desafio que compreendo que cause entusiasmo.
Há muito tempo que queria ir ao Fogo, pois tinha curiosidade de ver o que era possível fazer. Não tinha dúvidas de que gostaria. E gostei do que comi...
Já foi há muitas semanas, mas lembro-me muitas vezes deste arroz de forno. Verdadeira comida conforto! Digamos que o arroz e a o Cântico Negro na casa de banho foi o que mais emoções me despertaram em todo um jantar que me soube muito bem e em boa companhia.
Foi bom depois procurar a gravação do João Villaret a recitar o Cântico Negro, mas estas buscas são como as cerejas... vem sempre mais alguma coisa. Encontrei também a gravação da Procissão de António Lopes Ribeiro recitada pelo João Villaret. Não sei porque razão, associo-a ao verão, janelas abertas e muita luz, na casa dos meus Pais, que tinham o LP.