Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Assins & Assados

Assins & Assados

29
Jun19

Bacalhoaria Moderna - um restaurante onde o nosso "fiel amigo" é tratado com a amizade e dignidade que merece

IMG_20190613_134520.jpg

 

amarelo.jpg

 

 

Chamamos ao bacalhau "fiel amigo". Tal reflete a sua importância e posição única na alimentação e cultura portuguesas. É mesmo mais do que um alimento, de facto pode ser considerado um símbolo da nossa identidade. Este estatuto foi adquirido ao longo dos séculos, em que o bacalhau passou de um ingrediente associado à abstinência e à pobreza, a um produto sofisticado, que tem o seu lugar nos restaurantes de fine dining


Abundante nas águas do Atlântico Norte, o percurso para chegar até ao sul da Europa era longo, tal não impediu que fosse trazido para o nosso país e adquirisse uma grande popularidade. Somos os maiores consumidores do mundo (comendo aproximadamente 20% de todo o bacalhau capturado nas águas deste planeta). Os pescadores portugueses começaram a pescá-lo no século XV nas águas longínquas em que vive, mas hoje Portugal importa mais de 96% do bacalhau da Noruega e da Islândia. Temos, no entanto, as maiores instalações do mundo para produção de bacalhau salgado.

 

Era necessário preservá-lo para que pudesse suportar a longa jornada sem se deteriorar. Salgá-lo e secá-lo foi o método escolhido. As alterações que sofre neste processo de conservação conferem-lhe o sabor de que tanto gostamos.  Fala-se mesmo de um processo de "Cura Tradicional Portuguesa".

 

O consumo de peixe, em Portugal como em outras sociedades europeias, está associado à religião. O cristianismo impunha o jejum e abstinência de carne e gorduras animais em grande parte do ano. As áreas costeiras tinham acesso a peixe fresco, mas esse não chegava facilmente ao interior. Foi o processo de conservação referido que permitiu que se difundisse um pouco por todas as regiões, e ocupasse um lugar importante na mesa dos portugueses nos dias em que a religião não permitia o consumo de carne. Possivelmente o seu alto teor de proteína (cerca de 80%), que contribuía para enriquecer a dieta extremamente pobre de quem o comia, seja outra causa da sua popularidade.

 

josefa de obidos.jpg

 

A primeira representação conhecida de um bacalhau aparece numa pintura de uma mulher portuguesa, Josefa de Óbidos, na segunda metade do século XVII. No século XVIII as receitas com bacalhau começaram a aparecer em livros de culinária portugueses. E de tal forma se tornou imprescindível, e um "fiel amigo", que desde o início do século XIX, associado às batatas e às couves, tem sido o elemento central na ceia de Natal dos portugueses. 

 

Cebola, alho, azeite e batatas são os principais ingredientes que surgem nos pratos de bacalhau, que é usado “do nariz à cauda”. Um panfleto do final do século XVIII referia que os portugueses conheciam 1000 formas de cozinhar bacalhau. 

 

Talvez por isso a Chefe Ana Moura diga que não se sente limitada nas suas opções e criatividade. Pensa um pouco, e diz que acha que se fosse uma cozinha baseada em qualquer outro produto, a limitação pudesse ser maior. Disse-me isto há dias, numa refeição para que fui convidada na Bacalhoaria Moderna. Um restaurante que faz todo o sentido, já que há que prestar tributo ao nosso "fiel amigo" e manter esta amizade. Ou seja, há que conferir-lhe dignidade e consumi-lo, sobretudo se for bem cozinhado e com qualidade, o que é o caso na Bacalhoaria Moderna.

 

Um restaurante, com uma decoração em tons claros, simples e elegante, e em que a decoração se inspira no mar, sendo central a parede com bacalhaus Bordallo Pinheiro que lembram um cardume a nadar. Na Bacalhoaria Moderna usa-se bacalhau de cura tradicional portuguesa, que vem da Islândia. É usado para preparar pratos tradicionais, que se pretende que sejam fiéis aos originais e que os reconheçamos, embora sejam apresentados de uma forma mais refinada. Um restaurante em que há também espaço para alguma criatividade.

 

O almoço começou com um bom pão, manteiga, brandade e pastéis de bacalhau.

 

IMG_20190613_132349.jpg

 

Já com o estômago aconchegado e o sabor do bacalhau na boca, a servir de aperitivo para o que se seguia, chegaram as entradas.

 

IMG_20190613_133249.jpg

Tártaro de Bacalhau com Vinagreta de Mostarda

 

IMG_20190613_133320.jpg

Línguas de Bacalhau com Gema de Ovo

 

Uma mais moderna, outra mais tradicional. Fresco e saboroso o tártaro que comecei por comer, óptimas as línguas de bacalhau, com a sua textura característica que contrastava com o crocante do panado. A gema de ovo dava uma agradável cremosidade e suavidade.

 

Seguiu-se um prato que todos reconhecemos, e de que todos gostamos. Saboroso, muito cremoso, por cima algumas batatas conferiam um contraste de textura e a azeitona surgia quase como molho. Pequenos detalhes que não alteravam a identidade.

 

IMG_20190613_135557.jpg

... à Braz (Posta Asa Branca)

 

IMG_20190613_140811.jpg

... em Arroz (Lombo)

 

IMG_20190613_143150.jpg

... com Grão e Broa (Lombo)

 

O arroz muito saboroso, com um azeite picante para quem quisesse alterar-lhe um pouco a personalidade. Não será o tradicional arroz de bacalhau, mas era muito bom. Excelente também o bacalhau com grão. Ponto de cozedura perfeito, o grão inteiro e também em puré. O crocante da broa conferia um apontamento de textura e sabor complementar. Delicioso!

 

Já o prato seguinte pretendia levar-nos para fora da nossa zona de conforto, associando o estragão, uma erva que não usamos na nossa cozinha. Outro prato muito bem conseguido. 

 

IMG_20190613_144943.jpg

... com Couves, Estragão e Tomate (Cachaço)

 

Vários pratos em que o ingrediente base era o mesmo, vários pratos tão diferentes...

 

Seguiram-se as sobremesas. Estas sem bacalhau... Mas fica o desafio de criar uma sobremesa com bacalhau.

 

IMG_20190613_150619.jpg

Torta de Laranja, Moscatel e Rum.

 

Uma sobremesa conforto. Tão parecida com a que a minha Mãe fazia!

 

IMG_20190613_150645.jpg

Tarte de Queijo e Toffee

 

Esta sobremesa mais moderna e igualmente boa. Olhando agora para as fotos, dá para entender um vai e vem constante entre a modernidade e o tradicional, a descoberta e o conforto do conhecido.

 

Almocei com a Susana Almeida e Sousa, que idealizou este espaço, que me falou do projeto e dos objetivos. Uma conversa que se foi tornando cada vez mais animada ao longo da refeição. Dá para entender a paixão que a levou para esta área, apesar de ser arquiteta.

 

Da mesa via-se o movimento da cozinha a uma certa distância. Perguntei à Ana Moura se não era um pouco stressante estar sempre a ser observada. Disse que não, referiu que em restaurantes onde esteve antes não via para quem cozinhava, que está a gostar muito da experiência de ver quem come o que cozinha, assim como as reações quando provam o que está no prato. É, portanto, uma cozinha com vista para a sala.

 

Para quem não gostar de bacalhau, há opções vegetarianas, assim como dois pratos de carne  e uma entrada de polvo.

 

Gostei muito, precisamos de mais restaurantes assim! Parabéns à Susana e à Ana por trabalharem com paixão para manterem esta amizade de séculos e darem dignidade e modernidade ao nosso "fiel amigo".

 

 

Bacalhoaria Moderna -  Rua São Sebastião da Pedreira, 150, Marquês de Pombal, Lisboa

 

 

23
Jun19

Férran Adrià: É preciso criar um discurso cultural verdadeiro.

Ferran Adria Lisboa.jpg

 

cinzento.jpg

 

 

Férran Adrià esteve cá a semana passada, trazido para um evento organizado por uma empresa de cervejas. Não estive no evento, pois a participação, tanto quanto sei, era apenas por convite. Sendo assim, apenas sei o que li nos jornais.

 

Noutras ocasiões já ouvi, mais do que uma vez, falar Férran Adrià. Inclusivamente em tempos escrevi sobre isso. Conheço relativamente bem as características do seu trabalho, li muito sobre ele, tive a oportunidade de ir ao El Bulli e, inclusivamente, o seu trabalho (sejam as características dele, a sua evolução ao longo de várias décadas, assim como várias técnicas introduzidas por ele) fazem parte das matérias que leciono e a que dedico pelo menos umas 20 horas de aula ao longo do ano letivo.

 

O seu trabalho vai muito para além do  "fogo de artifício" geralmente transmitido. Uma palestra sua é geralmente muito rica de informação e reflexão. No que li, aqui e ali surgem alguns vislumbres disso, por exemplo quando fala da importância do conhecimento na evolução e prática da boa cozinha (por exemplo aqui), ou nas ideias pré-concebidas e sem fundamentos sobre aquilo que comemos (por exemplo aqui), ou mesmo quando fala da relevância da gastronomia para a economia (por exemplo aqui), um tema ainda levado muito pouco a sério pelo governo.

 

Tenho pena que, no que li, os aspetos principais do seu trabalho e da sua evolução tivessem, em geral, sido deixados de lado. Tudo o que li passa sobretudo sobre o que ele referiu sobre a cozinha praticada presentemente em Portugal e sobre a cozinha portuguesa. De que, curiosamente, ele não conhecia quase nada, a certa altura até me pareceu vê-lo hesitar sobre o assunto, referindo depois que estava cá há dois dias e já podia falar um pouco. Dois dias é curto, e a amostragem limitada. Portanto, opiniões a que deram tanto destaque, como que em vez de 20, poderíamos ter 100 restaurantes com estrelas Michelin, não têm muito significado (de facto aparentemente os dedos de uma mão chegam e sobram para contar os restaurantes que conheceu em Portugal). Porque é que precisamos tanto que alguém valide o valor da nossa cozinha, mesmo sem a conhecer? Não seria o trabalho dele, e tentar aprender com ele, bem mais importante?

 

No entanto há um aspeto que achei muito interessante. As suas opiniões sobre a forma como podemos dar visibilidade à nossa cozinha (que de facto se aplica a qualquer cozinha de qualquer país). A importância de nos focarmos naquilo que nos torna únicos. Neste vídeo ele fala sobre isso:

 

 

Diz que estrelas Michelin, prémios... não são particularmente importantes. Que o importante é transmitir aquilo que é único na cozinha portuguesa e contextualizá-la na história e cultura portuguesas.

 

Fiquei contente por ouvi-lo dizer isto. Sobretudo porque venho há vários anos defendendo o mesmo. Até aqui já o tenho referido. Por exemplo num dos comentários deste post de 2017, em que disse:

 

...tenho pensado muito nisto há já alguns anos. Mais dúvidas do que respostas. De qualquer forma aqui ficam algumas questões e constatações que tenho feito ao longo do tempo:

- A primeira questão é: havendo 195 países no mundo, todos eles com a sua cozinha (e em tempos dei-me ao trabalho de compilar pelo menos uma receita de cada um e de procurar saber um pouco mais sobre a cozinha de cada um), e havendo muito poucos que têm uma cozinha bem conhecidas, porque razão a nossa haveria de ser? A que conclusão cheguei? Nenhuma segura. O interesse que lhe acho virá de ser portuguesa e desta ser a cozinha das minhas memórias? Não sei...

- A todas as cozinhas bem conhecidas, associamos um estilo de vida, a personalidade e cultura de um povo, emoções - francesa, italiana, japonesa, chinesa... Há muito que constatei isto e tenho sérias dúvidas de que seja possível "vender" uma cozinha sem lhe associar estas componente. Não acredito que produtos bons, ou uns pratos bons vendam grande coisa. 

E aqui, pode não ser simpático, mas tenho que dizer que para termos bons produtos que a pudessem vender a cultura gastronómica tinha que ser maior, a cultura de quem produz na generalidade também. Há muitos países que têm bons produtos e bons pratos. Há-os por todo o lado, muita vezes melhores que os nossos.

- Se temos coisas únicas? Temos, mas algumas não são de todo exploradas. 
Somos o país da Europa com maior consumo de arroz per capita (17 kg por pessoa, segundo li, corresponde ao dobro do valor dos países europeus a seguir a nós - Itália e Espanha). E temos uma enorme variedade de formas de cozinhar arroz. Isso não é explorado, nem sequer pelos nosso cozinheiros que preferem fazer risotto. Mais explorado é o peixe, em que somos o terceiro maior consumidor do mundo per capita, a seguir aos islandeses e japoneses. Os nossos doces de ovos, a variedade de coisas que fazemos com ovos e açúcar e se lhes juntarmos amêndoa ainda mais. Parece-me também uma coisa única.

Para uma país pequeno a variedade da cozinha é enorme, também isto importante, mas há que encontrar um fio condutor.

Ou seja acredito que temos coisas únicas. Mas também que não bastam, há que associá-las a história, cultura e à nossa personalidade. E é isso que tem que se vender.

E se temos coisas para associar? Acredito que sim. Andámos pelo mundo, "distribuímos" produtos e técnicas que mudaram a forma de meio mundo comer.

De facto somos um país pequeno, mas com uma cozinha que influenciou outras um pouco por todos os continentes. Acredito que seja uma coisa que devia ser analisada e poderia ser útil para dar uma imagem forte à nossa cozinha. Tinha que ser uma ação muito bem feita e estudada, muito pensada e coerente. Por pessoas de muitas áreas diferentes. Mesmo assim seria difícil.

 

Peço desculpa pela imodéstia, e não pretendo de todo comparar-me com Férran Adrià. Mas acredito profundamente no que defendo há muitos anos, várias vezes o fiz. Por isso, fiquei de facto muito contente quando li que Férran Adrià defendia basicamente o mesmo. Espero que ele, com o peso que tem, seja ouvido. Contudo acho que a primeira questão a que temos que responder é:

 

Havendo 195 países no mundo, todos eles com a sua cozinha, e havendo muito poucos que têm uma cozinha bem conhecidas, porque razão a nossa haveria de ser?

 

É que o destaque dado à validação à nossa cozinha feita por Férran Adrià, que tinha aterrado aqui dois dias antes, demonstra que primeiro que tudo precisamos de pensar mais nisto. Precisamos de ter uma resposta a esta questão, muito mais do que da validação de quem a conheceu dois dias antes e estava aqui como convidado.

 

 

01
Jun19

O Cais do Ginjal com a sua beleza dura... e Lisboa na outra margem...

IMG_20190401_155043.jpg

 

beige.jpg

 

 

Gosto muito de Lisboa vista do outro lado do Tejo. Gosto da azáfama de Cacilhas. Gosto de atravessar o Tejo de barco (mas não dos barcos, são bonitos vistos de fora, dentro nem por isso). Usar o comboio que atravessa a ponte para regressar a Lisboa dá-me a sensação de "regresso do trabalho", usar o barco dá-me a sensação de "sair da rotina do quotidiano, de quase férias". Faço-o frequentemente às sextas feiras, ou quando estou distraída e me esqueço de sair no Pragal (o que aconteceu hoje à tarde, e aproveitei para comer uns caracóis antes de apanhar o barco).

 

Há anos que andava a pensar dar um passeio ali pelo Cais do Ginjal. Nunca o tinha feito. Numa sexta feira recente  estava tão cansada que achei que precisava mesmo de algo diferente, que me fizesse sentir de férias, ainda mais do que o barco, e meti-me a caminho.

 

A vista de Lisboa do outro lado do rio deixa-me sempre com a respiração suspensa... é tão bonito! Gosto daquela visão de fora, sem sentir as pessoas, o movimento, os sons, quase sem vida, como se fosse uma pintura. Podemos distanciar-nos e  imaginar a cidade como quisermos. 

 

IMG_20190401_141228.jpg

IMG_20190401_141628.jpg

 

A caminhada durou uns 15 minutos, sabia que havia uns restaurantes no final, mas durante muito tempo nem vestígios deles. De um lado o rio, do outro um conjunto de prédios degradados.

 

IMG_20190401_141807.jpg

IMG_20190401_141657.jpg

IMG_20190401_141759.jpg

 

IMG_20190401_141920.jpg

IMG_20190401_142033.jpg

 

O rio limpíssimo, as águas completamente transparentes.

 

IMG_20190401_155029.jpg

 

A certa altura vislumbrei os restaurantes que sabia ali estarem.

 

IMG_20190401_142113.jpg

IMG_20190401_142341.jpg

IMG_20190401_143251.jpg

 

Sentei-me numa mesa, curiosamente o empregado de mesa fez um enorme esforço para me convencer a ficar dentro do restaurante, numa sala escura, sem vista para o exterior... não entendi o objetivo. Fiquei na esplanada.

 

IMG_20190401_151023.jpg

 

Pedi algo para comer, nada de memorável... Estava a começar a ficar fresco, e eu tinha-me esquecido de trazer o casaco, pedi uma manta. Ainda dava uma maior sensação de férias, estar ali com uma manta pelos ombros a ver Lisboa do outro lado...

 

Ao fundo um elevador que permite um acesso diferente aquele espaço. Deve ser uma experiência engraçada, mas não o usei. Talvez noutra oportunidade.

 

IMG_20190401_145914.jpg

 

Regressei pelo mesmo caminho.

 

IMG_20190401_141315.jpg

 

Todos aqueles edifícios degradados e todos aqueles graffitis coloridos, têm uma beleza própria e dura de que gosto muito. Contudo, acho difícil entender como é que um espaço como aquele, com uma vista belíssima e o rio logo ali ao lado, está naquele estado. Li posteriormente que há planos para ali serem construídos casas, hostels, espaços para indústrias criativas, lojas, praças e passeios largos. De facto o espaço tem todo o potencial para isso. Mas não terá mais aquele tipo de beleza e encanto... 

 

No final reparei em dois graffitis que não tinha visto inicialmente.

 

IMG_20190401_155943.jpg

IMG_20190401_160055.jpg

 

Reparei também que estava bem menos cansada, e pronta para o fim de semana.

 

Mais sobre mim

Seguir

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Pesquisar

Comentários recentes